segunda-feira, novembro 11, 2013

Frutas

Ah, minhas crianças, venho aqui lhes dizer que as frutas não nascem das gôndolas.


Venho contar como é bom catar amoras no mato e voltar pra casa inteiramente roxo, manchado até debaixo das unhas, com a roupa inutilizada, a barriga saciada e a alma lavada.

Como é bom aprender a usar uma faquinha inocente para “cascar” laranja sem estragar a casca e depois girar recitando as letras do alfabeto pra ver em que letra ela arrebentava. E essa letra, duvido que vocês saibam, crianças, seria a letra da pessoa com quem você iria casar.

Como é bom subir num pé de jabuticaba e ir “pocando” as cascas com os dentes e cuspindo os caroços no chão, deixando sementes de novas árvores e novas infâncias.

Como é bom ver as mangas “madurarem” quando chega a hora, comer o jambo oco e perfumado debaixo de uma sombra, torcer pra chegar o tempo de pitanga, fazer careta com a carambola roubada ainda verde da casa da esquina, gostar mais de um vizinho do que do outro porque na casa dele tem pé de ameixa japonesa.

Ah, minhas crianças, as frutas não são produtos em oferta, não brotam em bandejas, não vêm do outro lado do mundo a preços com muitos zeros. Isso são outras coisas.

As frutas, meus pequenos, são casca, caroço e caldos. São delícias lambuzadas, catadas, divididas, esperadas. São indicações e pontos de encontro “debaixo da bananeira”, “depois daquele lote que tem limão-capeta”, “a casa do Fulano é a que tem um cajueiro bem na entrada”.

Ou talvez não sejam mais isso. Talvez só existam descascadas e picadas no prato, na lancheira que vai pra escola, na gondola, na feira, no sacolão.

E se for assim, tudo bem, porque esse mundo não é mais meu. O meu ainda tem, e sempre terá, uma mão esticada, um corpo equilibrado, um olhar fixo na amora mais alta, aquela pretinha, madurinha, perfeita pra fazer o dia.
 
 
 
 
Direto na têmpora:  Sacrilege - Yeah Yeah Yeahs

sexta-feira, novembro 08, 2013

Duas coisas

Raso o bastante para não se afogar. Fundo que sirva para aprender a nadar.

Perto o bastante para poder voltar. Longe que justifique a vontade de chegar.

Simples o bastante para tirar o ar. Complexo demais para se tentar explicar.

Uma coisa e outra.

Duas coisas e uma.

Dois caminhos e todos.





Direto na têmpora: My moon my man - Feist

Madri

Madri, a cidade dos sonhos do casal. Juntaram grana por três anos até terem condições de fazer aquela viagem da maneira correta: lugar na primeira classe, hotel cinco estrelas, reservas nos melhores restaurantes. Compraram uma câmera nova, os guias mais descolados e ela ainda deu aquele upgrade nas roupas que iria levar dentro da mala recém-adquirida.

O primeiro dia foi perfeito. Temperatura amena, céu azul, caminhando pelas ruas e parando para beber um bom vinho espanhol e saborear uns tapas. Um jantar romântico, uma lua cheia e uma noite perfeita na suíte gigantesca deram o toque final no início maravilhoso de viagem.

Manhã seguinte, após um café da manhã leve e saborosíssimo, saem felizes do hotel, mãos dadas, sorriso no rosto. Ela observa as ruas e ele, involuntariamente, segue por alguns segundos o decote de uma madrilenha de parar o trânsito da união europeia inteira.

Escapou rápido da distração e virou-se para dar de cara com o olhar furioso da mulher. Ainda tentou disfarçar:

- Bonita, né?

A resposta foi um silêncio gelado que durou o restante da viagem inteira. Os 5 dias seguintes seguiram-se protocolares, distantes, sem emoção alguma por parte dela e cheios de olhares pidões, piadas e presentes por parte dele.

Na última noite ele, desesperado para consertar tudo o que aquele olhar rápido e inconsequente havia estragado, fez uma loucura e comprou um colar que sairia praticamente pela metade do que havia custado a viagem inteira.

Na mesa do café da manhã ele então entregou o colar junto com o mais sincero e profundo olhar de arrependimento.

Ela então desabou a chorar e deu nele um abraço apaixonado e arrependido. Imediatamente ele soltou o discurso de improviso:

- Tudo bem, meu amor, eu entendo. Ciúmes é um negócio normal. Eu é que me sinto péssimo por ter estragado nossa viagem com essa bobagem. Justo eu, que tenho a mulher mais maravilhosa do mundo ao meu lado...

Então, antes que ele continuasse, ela interrompeu.

- Não é por isso que eu estou chorando, Julio. É que eu só queria voltar no tempo para não ter jogado sua passagem no rio Manzanares naquele dia em que eu vi você olhando para aquela mulher.

E assim foi, ela de volta pra casa e Julio dormindo três dias no aeroporto para economizar com hospedagem e conseguir pagar o colar que havia comprado.




Direto na têmpora: Trophy Wife - The National

Nomes

Maldita memória. Como ele pôde esquecer o nome daquele menino que fazia natação com ele? Fernando? Bernardo? Eles foram melhores amigos desde bem pequenininhos até os 13 anos de idade, quando o garoto mudou-se para Vitória.

Ernesto? Rodrigo? Re… Ro… o nome com certeza era com “R”. E o sobrenome… com “C”! Não, com “G”, isso, certeza de que era com “G”.

Rogério Gomide? Reinaldo Gouvêa?

Os dois passavam o final de semana brincando no clube, poxa! Ele tinha uma irmã mais nova que usava óculos grossos e o pai tinha um Opala.

Roberval? Não, claro que não era Roberval.

A mãe era dona de casa e fazia um bolo de cenoura absurdo de bom. Era torcedor do Guarani de Campinas, olha só que loucura.

Rinaldo Gonçalves? Rubens Guimarães?

Renato! Isso, o nome dele era Renato. Renato Guerra? Renato Góes? Renato Gomes! Pronto, agora tinha certeza, Renato Gomes era o nome do amigo.

Virou-se para o computador e começou uma busca frenética. Google, Facebook, LinkedIn e dá-lhe milhares de Renato Gomes, mas nenhum que fosse seu velho colega de infância.

Ficou horas nessa obsessão infrutífera até que o chefe chamou sua atenção.

- E aí, Marcelo, cadê o relatório?

Chamado ao dever, esqueceu o assunto e seguiu seu dia com as tarefas chatas e repetitivas de sempre.

À noite, deitou-se exausto e dormiu rápido. Foi acordado no meio da madrugada com um momento de clareza: Henrique Costa! Nem Renato e nem Gomes, Henrique Costa era o nome do coleguinha. O bom e velho Henrique Costa, como poderia esquecê-lo?

Levantou da cama em um salto para o susto da mulher e partiu para o computador rumo a mais uma longa busca através de uma infindável selva de homônimos. Não importava, daquela vez ele estava seguro de que acharia seu amigo perdido, o grande Henrique Costa.

Infelizmente o nome certo não era esse, era Henrique Castro. E Marcelo nunca mais soube dele.

Maldita memória.




Direto na têmpora: Simmer Down - The Specials

quinta-feira, outubro 03, 2013

Louco por ela

Tinha começado a correr há cerca de um mês e já se sentia melhor. As roupas começavam a ficar mais largas, o fôlego e o sono melhoravam, sentia-se um novo homem.

Claro que era difícil controlar a dieta e acordar às 5h30 da matina para se exercitar, mas por causa da ruivinha do escritório ele nem sequer pensava nos problemas.

Apaixonou-se por ela assim que a viu e chegou a receber alguns olhares interessantes poucos dias depois. Bastou isso para que ele resolvesse mudar de vida e entrar em forma de vez.

Os colegas repararam a mudança e o incentivavam cada vez mais. Era como se treinasse para uma maratona em que o prêmio fossem os beijos da ruivinha. Era um homem em uma missão e nada poderia pará-lo.

Passou a usar roupas mais modernas e a exalar confiança. Sentia-se pronto. Hoje seria o dia em que puxaria papo com sua musa e a chamaria para sair. Toda a dor, todo o cansaço, toda a forme, tudo valeria a pena.

Posicionou-se estrategicamente perto da copa e aguardou sua paixão chegar para tomar um café como fazia diariamente. Vinha como uma amiga, sorridente, leve, quase um sonho.

Um tempo atrás a amiga poderia atrapalhar, mas para o “novo” ele nada seria empecilho. Preparou-se para a abordagem e já ia abrindo a boca quando ouviu a ruivinha dizer:

- Tô apaixonada mesmo, viu? Ele é muito fofo. Adoro gordinhos!

Fingiu que cumprimentava alguém e mudou sua trajetória rumo ao elevador. Dois minutos depois estava pedindo um X-Tudo na lanchonete da esquina. Com bacon extra, é claro.




Direto na têmpora: Let me go - Cake

segunda-feira, setembro 23, 2013

12 coisas

--> Das 12 coisas com as quais sonhei, uma eu esqueci por completo e me deixa vago como um resposta sua, perdido como uma palavra minha, sem sentido como estarmos juntos.

Das 12 coisas com as quais sonhei, apenas uma importa e se deixa torta sobre a mesa da sala, como uma colher estragada, um lenço rasgado e eu finjo que não vejo, que não ligo, que não dói.

Das 12 coisas com as quais sonhei, 11 já não me pertencem e correm soltas por um outro sonho amarelo, feito de 12 coisas ou mais.




Direto na têmpora: Boyfriend - Best coast

Cão

O cachorro estava há uns três dias esquivando-se da chuva sob a marquise do prédio, às vezes dormindo, às vezes ensopado e tremendo de frio. 

Não sei o que comia, o que fazia, mas estava ali, olhos baixos, enrodilhado como um cúmplice que aguarda. Era preto, de patas grandes e dava a impressão de que simplesmente não queria ser visto.

Talvez tenha sido exatamente isso que me fez subir com ele.

Deixei o cão livre para circular, mas ele não cheirou nada, não vasculhou nada, mal olhou ao redor. Simplesmente deitou-se entre o sofá de couro e a parede e ali ficou, dormitando de olhos abertos.

Fui para o quarto, liguei a tv e só depois me lembrei de que o bicho poderia estar com fome ou sede. Coloquei um resto de frango frio e um pote de margarina com água perto do sofá.

Dormi com a televisão ligada e acordei com o sol na cara.

Na sala, o frango havia sumido e o pote de margarina estava vazio. O animal permanecia como se nunca houvesse se movido.

Continuamos assim por quase um mês, praticamente estranhos um ao outro. Eu colocava frango e água, ele comia e bebia. Ele fazia suas necessidades, eu limpava. Nenhum carinho, nenhum latido, nenhuma aproximação, nenhuma amizade aparente.

Um dia, deixei a porta aberta enquanto conversava com um amigo e ele foi embora. Segundo o porteiro, saiu andando com a maior calma do mundo.

Nunca mais voltou.

E eu nunca fiquei tão sozinho.





Direto na têmpora: One step beyond - Madness

quinta-feira, setembro 19, 2013

Cachimbos, Flores e Isqueiros (texto do amigo Don LC)

Ao virar certa rua viu um velho sentado na calçada com um chapéu roto e uma roupa em mesma condição. Com o intuito de aparecer uma ser de alma boa tirou algumas moedas e colocou no chapéu do velho, este por sua vez olhou o homem com um olhar frio e profundo e começou a dizer:
_Sentei-me aqui para observar a rua, moro nessa casa.

O homem ainda de pé frente ao velho curvou-se para poder ouvir melhor o idoso, que falou com voz grave e levemente sombria.

_Vê este cachimbo? Disse levantando o ítem para o homem. _Eu costumava ter o prazer de acendê-lo na minha mocidade, neste mesmo lugar onde estou agora, enquanto eu o pitava meus filhos brincavam nessa rua e minha mulher fazia a comida.

_E hoje não o faz mais? Perguntou o homem com certa curiosidade.

_Não, já faz 20 anos que não acendo esse cachimbo, o isqueiro que eu usava não esta mais comigo.

_Ora, mas não seja por isso, tome o meu isqueiro.

_Não posso, veja que no meu cachimbo tem um nome de mulher.

_Sim vejo, mas o que tem isso haver?

_É o nome de minha esposa, ela me deu o cachimbo junto com o isqueiro.

_E o senhor perdeu o isqueiro? Perguntou o homem com um arrepio.

_Sim, mais que isto meu jovem, perdi minha esposa. E o velho olhou para o céu com se estivesse buscando algo.

_Bem, mas o que o isqueiro tem haver com sua condição de viúvo?

_Quando me casei com minha mulher, ela me deu esse cachimbo e o isqueiro. Quando fomos para nossa lua de mel perdemos nossas alianças e ela com o isqueiro iluminou uma parte escura e lá achamos o simbolo de nossa união, e eu disse a ela que enquanto ela estivesse comigo ela iria iluminar as trevas que eu encontrasse.

_Ainda sim, não entendo, mas é uma boa história.

_Quando Clara morreu, ela levou consigo a minha luz, eu não via nada além de escuridão e o corpo dela cheio de luz, pois nas mãos dela coloquei meu isqueiro junto com as nossas alianças.

_Entendi. E ficou com o cachimbo como lembrança? Perguntou o homem com certa comoção

_Filho, eu fiquei com o cachimbo pois todos os dias nesta data eu me sento aqui e visto este terno e coloco o chapéu na posiçao que está.

_ E por qual motivo?

_Foi nessa data que nos conhecemos, eu passando por (como você) aqui e o vento tirou meu chapéu, quando ela passava eu me agachei para pegar e ela deixou cair uma flor no meu chapéu. Naquele dia encontrei meu grande amor. Namoramos e neste mesmo lugar aceitamos nos casar e comprei esta casa a custo de muito suor.

_Mas que historia fantástica! O homem não disfarçava a admiração que sentia.

_Todos os dias eu me sentava aqui e clara pegava meu isqueiro para acender o fogão e me agradecia com um beijo e acendia meu cachimbo. Quando ela morreu perdi a graça de acender o cachimbo sem sentir o cheiro dela. Desde então, me sento aqui nessa data na esperança de ver uma flor no meu chapéu ou de sentir um o cheiro dela enquanto meu cachimbo se acende.

_Entendo, mas por que vc se veste com esse terno tão surrado e fora de moda?

_Este é o terno que eu encontrei Clara, que me casei com ela e que batizei meus cinco filhos. Tambem é o terno que velei minha amada.

O velho estava com o ar pesado como se quizesse ficar sozinho. O homem pegou suas moedas pediu desculpas ao velho por te-lo confundido com um mendigo e seguiu sua rota pensando em tudo o que o velho dissera. Naquele dia ele queria ser um marido mais amoroso e um pai mais presente.

Ele voltou pelo mesmo caminho e deu com uma multidão, olhou assustado o lugar onde o velho estava sentado quando um vento forte jogou seu cigarro longe. Seguiu a guimba com os olhos e viu que ela parou perto do amigo que estava estranhamente imóvel, se aproximou para ver melhor abrindo caminho entre a multidão.

O velho estava morto, em seu chapéu tinha uma flor branca e seu cachimbo estava aceso. O homem desabou em um pranto sentido com alegria e comoção. Chegou em casa, beijou sua esposa como jamais a beijou e aos seus filhos disse o tanto que eles eram importantes para ele.

Naquele dia ele percebeu o quão bela pode ser a morte quando a vida é cheia de amor.




Direto na têmpora: No surprises - Radiohead

terça-feira, setembro 17, 2013

Fome

A vida come sonhos no café da manhã e devora planos perfeitos no almoço.

Para o jantar, um ou dois amores eternos, nada mais.

É que a vida não se permite ficar gorda e farta, prefere ser de um magro quase triste, curta e suficiente.

A vida é escassa em regra, quase sempre, quase para todos, e é preciso celebrar a opulência dos momentos (alguns, enfim) para poder ser feliz.
 
 
Direto na têmpora: Recover - Chvrches

segunda-feira, setembro 16, 2013

Esmola

Passou ao lado do mendigo e, sem olhar, tirou a nota de dois reais da carteira e jogou displicentemente na vasilha de plástico que jazia à frente do senhor sujo e de cabelos brancos. Vinte passos à frente, entrou na cafeteria e, ao abrir a carteira, deu falta da nota de cem que havia sacado mais cedo.

- Entreguei pro mendigo por engano.

Imediatamente, quase por reflexo, olhou em volta. O maltrapilho havia sumido e levado sua grana. 

Que descuido! Não que o dinheiro fosse fazer falta, ele andava bem de vida com o novo salário, mas dava raiva demais um ato tão bobo custar tanto.
A raiva começava a subir junto com o café que ele bebia amargamente. Quem mandou ser bonzinho? Quem mandou querer ajudar e dar esmolas pra um vagabundo qualquer? Um grande otário de coração mole, era isso que ele era.
Sentia o rosto queimando de vergonha e frustração e já não olhava para os outros. Abriu o jornal que trazia com ele e fingiu ler alguma coisa para evitar que percebessem, por alguma arte mágica, como ele havia sido burro.
De repente, uma voz grave ecoou pela cafeteria.
- Ô, menina, vê aí um outro café pro dotô e pode colocar um pão de queijo também, viu?
Virou-se e deu de cara com o mendigo sorrindo seu sorriso pobre em dentes, um gigantesco buquê de rosas vermelhas na mão.
- O lanche hoje é por minha conta, dotô, pode aproveitar.
E antes que pudesse esboçar qualquer reação, sentindo-se observado pelo planeta inteiro, ouviu o outro dizer ainda, cheio de simpatia genuína.
- E as flores são pra patroa. Fala que eu mandei um beijo pra ela. O nome é Francisco, viu? 




Direto na têmpora:  Block after block - Matt & Kim

quinta-feira, setembro 12, 2013

Brinquedos

Meu brinquedo favorito era uma bola de couro pesada demais para a força das minhas pernas. E ainda assim eu enchia o pé e achava que eu era o Rivelino vendo a redonda avançar poucos centímetros. 

Meu brinquedo favorito era um capacete de bombeiros muito grande para a minha cabeça que eu tirava dos olhos enquanto dizimava incêndios e salvava vidas sem nunca deixar de fazer eu mesmo a sirene. 

Meu brinquedo favorito era um Forte Apache em que eu era os índios e os soldados e montava estratégias e mudava os rumos da batalha com um único herói desgarrado que avançava sozinho e vencia tudo. 

Meu brinquedo favorito era ver Sophia brincando. Jogando as bolinhas que faziam barulho, puxando o carrinho que acendia luzes, ninando a Minnie como se fosse um bebê. 

Meu brinquedo favorito é ser pai, é dizer pra ela que vá, é pedir a ela que fique, é fazer carinho, é olhar no olho, é ganhar um beijo, é contar histórias. Meu brinquedo favorito é o hoje, meu brinquedo favorito é pra sempre, meu brinquedo favorito é a vida.




Direto na têmpora: One for the road - Arctic Monkeys

quinta-feira, agosto 29, 2013

Donadon

Os políticos brasileiros sabem manter a calma sob pressão. O povo foi às ruas, gritou, esperneou, fez e aconteceu. Enquanto isso, nossos representantes esconderam as cabeças e escolheram uma posição confortável para esperar.

Ânimos esfriaram, ritmo de vida normal e, quando já era tranquilo agir, liberam Donadon de pagar por toda a roubalheira que cometeu.

Pode ser que nós, o povo, percebamos a vergonha, o desrespeito, a passada de mão na bunda e o tapa na cara que isso é e voltemos às ruas.

Mas eles já sabem o que fazer. Posição confortável e cabeça abaixada até o furacão passar, depois é só continuar o que estavam fazendo.




Direto na têmpora: So Here We Are - Bloc Party

terça-feira, agosto 27, 2013

Entusiasta



















O especialista sabe. O entusiasta pergunta.
O especialista conhece. O entusiasta procura.
O especialista executa. O entusiasta experimenta.
O especialista responde. O entusiasta conversa.
O especialista é profissional. O entusiasta é apaixonado.




Direto na têmpora: Let's Go Surfing - The Drums


quinta-feira, agosto 22, 2013

Mapas

Délio tinha uma mancha de nascença nas costas, logo abaixo da nuca. Talvez por causa da localização, longe das suas vistas, nunca deu muita bola pra ela nos primeiros anos de vida.

Até que um dia, já com seus 19 anos, uma namorada reparou:

- Dé, alguém já te falou que essa marca nas suas costas é igualzinha ao mapa da Fança?

Délio, que nunca tinha reparado no formato do mapa da França, respondeu que não, mas ficou pensativo com aquele comentário.

Os dias passavam e Délio cada vez mais se convencia de que aquilo só podia ser um sinal, uma indicação clara de que seu destino estava do outro lado do Atlântico, em Paris, Cannes ou em alguma cidadezinha do interior francês.

Começou a estudar a língua, informou-se sobre literatura, cinema, queijos e vinhos franceses e, assim que se formou em Turismo, partiu para encontrar o caminho que estava impresso em sua pele desde que nasceu.

No país novo conseguiu trabalho, fez amigos e, beirando os 30 anos, arranjou uma companheira francesa que, em sua mente, talvez fosse o grande objetivo daquela mensagem hereditária com a qual sempre convivera. Nunca mais voltou ao Brasil e tinha plena certeza de que toda a sua vida, cada minuto de sua existência, só fazia sentido por causa de Marie.

Casaram-se e já no primeiro ano ela engravidou. Com três anos de casamento veio o segundo pimpolho, mas, com a mesma mágica súbita que tudo começou, as coisas azedaram por volta do quinto ano.

Já não conversavam, a paciência de um com o outro rareava e as discussões entre eles ganhavam proporções gigantescas e faziam fama na vizinhança. Separaram-se após seis anos de união, não sem antes enfrentarem uma longa batalha judicial repleta de acusações mútuas e dor.

Era um homem ferido, traído pelos sinais.

Dali em diante já não se animava com relacionamentos românticos, desiludido pela peça que lhe havia pregado o destino, a maldita mancha que, na verdade, não era uma indicação de felicidade, mas o aviso de um desastre.

Viveu solitário e morno,sem grandes paixões, sem grandes momentos, sem grandes reviravoltas. Essa não era definitivamente a vida que esperava na França.

Aos 60 anos, em um exame de rotina, o médico comentou:

- Curiosa essa sua mancha nas costas. Alguém já te disse que ela tem o fomato do...

- Sim, do mapa da França. Eu sei...

- Mapa da França? Não, na verdade ela se parece com um mapa, mas não da França.

E mostrando a mancha através de um espelho completou o raciocínio de forma definitiva.

- Tá vendo? É o mapa da Alemanha sem tirar nem pôr. Perfeito!

E assim terminou a consulta, com Délio amargo, murcho, derrotado. Bem de saúde, sem dúvida, mas cheio de ódio pela antiga namorada dos 19 anos e sua terrível ignorância em Geografia.





Direto na têmpora: Ice Cream Truck - Casiotone For The Painfully Alone

quarta-feira, agosto 21, 2013

Caos

Tico ouviu um estrondo e imediatamente ficou alerta. Era novo naquela região e de onde vinha, uma fazenda tranquila no interior do Estado, esse tipo de barulho não era comum.

Tico havia chegado a Belo Horizonte coisa de dois dias atrás e ainda se acostumava com os sons, as cores e os movimentos da cidade. Saiu de casa praticamente uma única vez para uma consulta de rotina e de resto ficava por ali, meio sem ter o que fazer no apartamento.

Poucos segundos depois, um novo estrondo. E mais outro. Uma sucessão de explosões fez com que Tico corresse em busca de abrigo temendo o pior. O que seria aquilo?

Circulou o apartamento pequeno, mas apenas confirmou o que já sabia: estava sozinho. Tadeu havia saído mais cedo e deixado que ele enfrentasse aquela loucura sem um único conselho ou dica sobre como agir.

O barulho não parava. Às vezes cedia e parecia que ia sumir apenas para voltar com mais violência ainda.

Tico se encolhia e apavorava cada vez mais. Por onde andaria Tadeu? Será que corria mais risco do que ele diante daquela balbúrdia?

Os minutos passaram como se fossem horas e Tico ali, começando a madrugada sem pregar os olhos ouviu o barulho da porta. Ficou indeciso entre correr para saber de Tadeu o que havia acontecido ou manter-se seguro e encolhido em sua cama.

Ao ouvir a voz de Tadeu sentiu-se mais confiante e correu ao seu encontro. O rapaz estava suado, agitado, cumprimentou Tico praticamente sem olhar e seguiu para o quarto dando socos no ar, saltando, agindo como Tico nunca tinha visto e como não conseguia compreender.

O barulho continuava e Tico aproveitou um momento de calma em que Tadeu sentou-se na sala para subir em seu colo.

Só então o rapaz percebeu como seu cão devia estar realmente assustado com aquela confusão toda.

- Ô, Tico, que susto, hein, garoto? Foi o Galo, Tico! É campeão, pretinho! A gente é campeão, pô!




Direto na têmpora: I need fun in my life - The Drums

terça-feira, agosto 20, 2013

Jogando o rebanho

Eu cresci ouvindo sobre a importância de ter um bom emprego. Sou de uma geração em que empreendedores eram gente com dinheiro pra investir em outro negócio e ganhar ainda mais grana.

Talvez por isso eu seja tão fascinado com o momento de grandes oportunidades para empreendedores que temos hoje. É algo tão distante da minha visão de mundo original que chega a me deixar pasmo.

O problema é que, se já era difícil jogar a vaquinha do penhasco quando eu era rapazinho, hoje fica mais complicado ainda botar pra rolar morro abaixo a ruminante nem tão gorda, mas que ainda dá leite que baste.

E tenho certeza de que muita gente sente o mesmo que eu, se apegando à falsa segurança de um emprego.

Ainda bem que o mundo mudou. Agora só me resta mudar também.




Direto na têmpora: Mayonaise - Smashing Pumpkins

terça-feira, abril 23, 2013

Velhinhos


Se algum dia eu ficar velhinho e a também já velha memória me falhar, peço que você me lembre, com calma e força, de tudo o que me fez te amar.

Ajude-me a lembrar das suas mãos, do seu sorriso, do seu carinho nas minhas costas. Repita como você dizia “meu lindo” e eu fingia que acreditava. Fale dos nossos sonhos, das nossas bobagens, dos apelidos tolos e de tudo o que aprendemos sem saber que aprendíamos um com o outro.

Conte tudo o que eu fazia pra te fazer feliz, tudo o que eu inventava pra te ver gargalhar, todas as viagens, todos os jantares, todas as manhãs.

Depois, quando eu tiver esquecido tudo de novo, venha amanhã, volte outra vez e me lembre novamente da vida que você me fez.




Direto na têmpora: Remember me - Cat Power

quinta-feira, abril 18, 2013

Homofobia, bullying e o que já fiz

Eu cresci homofóbico e eu cresci fazendo bullying. Naquela época era normal e pareceria até estranho não agir dessa forma.

A questão da homossexualidade era vista por mim e por quase todos os meus amigos como algo estranho. Ser chamado de "veado" competia com ser chamado de "filho da puta". As piadas com os gays estavam na televisão, vinham de nossos pais e colegas e, pra dizer a verdade, quase não conhecíamos homossexuais. Claro que havia, por exemplo, o cabelereiro gay, mas que tratávamos como uma excentricidade.

O tempo foi passando e eu comecei a conviver com homossexuais, primeiramente através da minha mãe, que tinha muito contato com gays. Aos poucos, muito lentamente, fui percebendo que essas não eram pessoas afetadas, sem profundidade, apenas personagens exóticos que circulavam enquanto nós vivíamos.

Comecei a notar que pagavam contas, batiam ponto, se decepcionavam, eram amigos, discordavam, concordavam, enfim, faziam tudo como eu.

A estranheza ia diminuindo, mas pra mim eles estavam bem como pessoas que eu encontrava de vez em quando. Eles lá e eu cá.

Só um bom tempo depois, quando comecei a ter amigos homossexuais e a realmente conviver com eles, é que percebi que a orientação sexual era como a cor do cabelo: não era credencial para mais nada a não ser a orientação sexual em si.

Existem gays e heteros chatos, negros e brancos engraçados, gordos e magros cruéis, altos e baixos com um coração de ouro. O que importa é a pessoa e não quem ela ama ou deixa de amar, com quem ela transa ou deixa de transar.

Ir contra esse direito da busca pela felicidade é ir contra o ser humano. É abrir espaço para que amanhã os perseguidos sejam os evangélicos ou os turcos ou os homens de cabelos cacheados.

Eu considero essa visão política e religiosa dos direitos dos homossexuais tão estúpida quanto era há alguns anos questionar, com base na religião e na política, o direito dos negros à liberdade e à igualdade. Mas ela existe e precisa ser combatida.

Eu, que durante muito tempo achei que não tinha problema criticar, menosprezar ou humilhar alguém por ser gay, estou aprendendo o quanto isso é idiota. Eu que achava que minhas piadas não feriam e que se ferissem, foda-se, penso um pouco mais antes de falar.

Ainda sou homofóbico em medidas que não percebo, racista em medidas que não percebo e faço bullying em medidas que não percebo. Se você procurar nas coisas que disse e fiz, certamente vai achar idiotices que me deixariam com vergonha e me colocariam ao lado de quem eu hoje sou contra.

Mas pelo menos agora tento ser consciente e pensar no outro ser humano que é tão sensível, falível, forte, estúpido e genial quanto eu e que simplesmente prefere fazer amor com alguém do mesmo sexo.

É que eu acho que a homofobia acaba primeiro na gente. E sei que ainda estou longe, mas não sigo mais de olhos fechados.




Direto na têmpora: FAT - Violent Femmes


quinta-feira, março 28, 2013

Minha opinião sobre o estágio

Acho que fazer estágio é algo muito diferente hoje do que era na minha época.

Antes de mais nada, ninguém fazia estágio para pagar faculdade. O nome disso era emprego, estágio era outra coisa.

Estágio era pra aprender, pra entrar no mercado, para conhecer os feras. Eu fiz estágio na SMPB com Geraldo Leite, Marcos Camargos Aderbal Teixeira Rocha Jr, Roberto Boca, Ricardo Carvalho, Amaury Vieira Silva e, se me lembro bem, recebi meio salário pra isso. Vou te falar, foi fundamental.

Se eu fosse estudante hoje, aceitaria alegremente meio salário mínimo para fazer estágio com profissionais como Márcia Lima, Cris Cortez, Dan Zecchinelli, Guilherme Araujo e tantos outros. 

Claro que o estagiário precisa de uma remuneração digna, mas outro dia eu vi gente reclamando de salário de R$ 1.500,00 para estagiários. Será que é isso mesmo? Mil e quinhentos reais (recebido, não pago) é pouco para quem está estudando fazer um período de aula prática tão importante?

Peraí. É claro que o estagiário contribui com a agência e merece ser recompensado, mas ele está ali pra conhecer, pra ganhar experiência e se formar.

Eu tive estagiários que hoje são profissionais fodaços. Gente como Laura Esteves e André Maia que sempre se importaram mais em crescer do que em fazer o pé de meia enquanto estagiavam.

O resultado aparece depois, quando entram pro mercado e juntam o talento que já têm com a experiência que ganharam. Aí eles arrebentam e ninguém segura.

Mas isso não foi um presente, foi uma vitória. E eles souberam a hora de ouvir, a hora de contribuir e a hora de assumir o show.

Admiro muito gente assim, que entende bem que para poder voar, é preciso primeiro aprender a caminhar.

De novo, sou totalmente a favor de uma remuneração digna para os estagiários, mas acho que muita gente ainda precisa entender que o reconhecimento é uma conquista, não um direito divino. E que poder aprender com quem sabe é uma puta oportunidade.




Direto na têmpora: Amongst the dead forever - Kult Country

quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Manuais de amar

Certa vez eu participei de uma palestra com um respeitado escritor mineiro que alertava sobre a necessidade de suar e ralar muito para escrever boa literatura.

Ao final do discurso ele ainda advertia: desconfie dos escritores que dizem ser inspirados, pois um livro deve ser fruto de esforço.

Eu, como alguém que tem uma sabida implicância com as normas, padrões e fórmulas, tive um pequeno derrame ao ouvir a sentença. Então quer dizer que a qualidade da obra é medida menos pela obra em si e mais pelo processo de criação?

Se descobríssemos amanhã que Fernando Pessoa escrevia sem esforço isso faria dele um merda? Se Picasso pintasse sem sofrer ele seria um embuste? Se um conto de Guimarães Rosa saísse em uma sentada isso seria picaretagem?

Achei e ainda acho o argumento do autor mineiro extremamente reducionista, tolo e claramente usado para defender uma visão própria e fechada da produção literária.

A mim, como leitor, importa o resultado. Mil vezes um livro delicioso escrito em um final de semana do que um fardo pouco criativo que levou anos para ficar pronto.

Já como autor, também pouco me importa se a ideia vem pronta ou se preciso extraí-la a fórceps. Basta que ao ler o fruto do trabalho eu possa dizer a mim mesmo que aquilo ficou bom e que teria orgulho de mostrar aos outros.

O resto é coisa de quem quer inventar manuais até para se amar.
 
Direto na têmpora: Time for heroes - The Libertines
 

quinta-feira, janeiro 17, 2013

É bom até que não é mais

Tem uma música da Regina Spektor chamada "On The Radio" que em determinado momento diz assim:

"This is how it works
You're young until you're not
You love until you don't
You try until you can't
You laugh until you cry
You cry until you laugh
And everyone must breathe
Until their dying breath"


Eu acho essa letra linda porque na vida tudo é quase sempre assim: muito bom até que não é mais. O tempo passa, o mundo muda, a gente também. O genial vira bobo, o apaixonante vira chato, o engraçadíssimo vira comum e a gente segue em frente sem ter a obrigação de gostar pra sempre do que já gostou um dia.

Não é falta de esforço, não é desistir das coisas, é simplesmente entender que imobilidade não é exatamente uma qualidade. Pelo menos não na maioria dos casos.


Claro que não vale pra tudo, mas vale muito pra empresas. O que era lindo ontem é comum hoje. O que era fundamental é desnecessário, o que era uma fórmula vira uma bobagem.


Porque o tempo passou, o mundo mudou e tem gente que n ão quer ver, não quer entender que "you try until you can't". Simples assim.

Não é ingratidão com o passado, com o vivido, com o caminho trilhado. É saber que tudo tem seu tempo e que evoluir é o exercício de reconhecer e escolher caminhos novos.


E que tudo aquilo que funcionava muito bem um dia pode deixar de funcionar.




Direto na têmpora: Monsterpussy - The Vaselines