segunda-feira, setembro 23, 2013

12 coisas

--> Das 12 coisas com as quais sonhei, uma eu esqueci por completo e me deixa vago como um resposta sua, perdido como uma palavra minha, sem sentido como estarmos juntos.

Das 12 coisas com as quais sonhei, apenas uma importa e se deixa torta sobre a mesa da sala, como uma colher estragada, um lenço rasgado e eu finjo que não vejo, que não ligo, que não dói.

Das 12 coisas com as quais sonhei, 11 já não me pertencem e correm soltas por um outro sonho amarelo, feito de 12 coisas ou mais.




Direto na têmpora: Boyfriend - Best coast

Cão

O cachorro estava há uns três dias esquivando-se da chuva sob a marquise do prédio, às vezes dormindo, às vezes ensopado e tremendo de frio. 

Não sei o que comia, o que fazia, mas estava ali, olhos baixos, enrodilhado como um cúmplice que aguarda. Era preto, de patas grandes e dava a impressão de que simplesmente não queria ser visto.

Talvez tenha sido exatamente isso que me fez subir com ele.

Deixei o cão livre para circular, mas ele não cheirou nada, não vasculhou nada, mal olhou ao redor. Simplesmente deitou-se entre o sofá de couro e a parede e ali ficou, dormitando de olhos abertos.

Fui para o quarto, liguei a tv e só depois me lembrei de que o bicho poderia estar com fome ou sede. Coloquei um resto de frango frio e um pote de margarina com água perto do sofá.

Dormi com a televisão ligada e acordei com o sol na cara.

Na sala, o frango havia sumido e o pote de margarina estava vazio. O animal permanecia como se nunca houvesse se movido.

Continuamos assim por quase um mês, praticamente estranhos um ao outro. Eu colocava frango e água, ele comia e bebia. Ele fazia suas necessidades, eu limpava. Nenhum carinho, nenhum latido, nenhuma aproximação, nenhuma amizade aparente.

Um dia, deixei a porta aberta enquanto conversava com um amigo e ele foi embora. Segundo o porteiro, saiu andando com a maior calma do mundo.

Nunca mais voltou.

E eu nunca fiquei tão sozinho.





Direto na têmpora: One step beyond - Madness

quinta-feira, setembro 19, 2013

Cachimbos, Flores e Isqueiros (texto do amigo Don LC)

Ao virar certa rua viu um velho sentado na calçada com um chapéu roto e uma roupa em mesma condição. Com o intuito de aparecer uma ser de alma boa tirou algumas moedas e colocou no chapéu do velho, este por sua vez olhou o homem com um olhar frio e profundo e começou a dizer:
_Sentei-me aqui para observar a rua, moro nessa casa.

O homem ainda de pé frente ao velho curvou-se para poder ouvir melhor o idoso, que falou com voz grave e levemente sombria.

_Vê este cachimbo? Disse levantando o ítem para o homem. _Eu costumava ter o prazer de acendê-lo na minha mocidade, neste mesmo lugar onde estou agora, enquanto eu o pitava meus filhos brincavam nessa rua e minha mulher fazia a comida.

_E hoje não o faz mais? Perguntou o homem com certa curiosidade.

_Não, já faz 20 anos que não acendo esse cachimbo, o isqueiro que eu usava não esta mais comigo.

_Ora, mas não seja por isso, tome o meu isqueiro.

_Não posso, veja que no meu cachimbo tem um nome de mulher.

_Sim vejo, mas o que tem isso haver?

_É o nome de minha esposa, ela me deu o cachimbo junto com o isqueiro.

_E o senhor perdeu o isqueiro? Perguntou o homem com um arrepio.

_Sim, mais que isto meu jovem, perdi minha esposa. E o velho olhou para o céu com se estivesse buscando algo.

_Bem, mas o que o isqueiro tem haver com sua condição de viúvo?

_Quando me casei com minha mulher, ela me deu esse cachimbo e o isqueiro. Quando fomos para nossa lua de mel perdemos nossas alianças e ela com o isqueiro iluminou uma parte escura e lá achamos o simbolo de nossa união, e eu disse a ela que enquanto ela estivesse comigo ela iria iluminar as trevas que eu encontrasse.

_Ainda sim, não entendo, mas é uma boa história.

_Quando Clara morreu, ela levou consigo a minha luz, eu não via nada além de escuridão e o corpo dela cheio de luz, pois nas mãos dela coloquei meu isqueiro junto com as nossas alianças.

_Entendi. E ficou com o cachimbo como lembrança? Perguntou o homem com certa comoção

_Filho, eu fiquei com o cachimbo pois todos os dias nesta data eu me sento aqui e visto este terno e coloco o chapéu na posiçao que está.

_ E por qual motivo?

_Foi nessa data que nos conhecemos, eu passando por (como você) aqui e o vento tirou meu chapéu, quando ela passava eu me agachei para pegar e ela deixou cair uma flor no meu chapéu. Naquele dia encontrei meu grande amor. Namoramos e neste mesmo lugar aceitamos nos casar e comprei esta casa a custo de muito suor.

_Mas que historia fantástica! O homem não disfarçava a admiração que sentia.

_Todos os dias eu me sentava aqui e clara pegava meu isqueiro para acender o fogão e me agradecia com um beijo e acendia meu cachimbo. Quando ela morreu perdi a graça de acender o cachimbo sem sentir o cheiro dela. Desde então, me sento aqui nessa data na esperança de ver uma flor no meu chapéu ou de sentir um o cheiro dela enquanto meu cachimbo se acende.

_Entendo, mas por que vc se veste com esse terno tão surrado e fora de moda?

_Este é o terno que eu encontrei Clara, que me casei com ela e que batizei meus cinco filhos. Tambem é o terno que velei minha amada.

O velho estava com o ar pesado como se quizesse ficar sozinho. O homem pegou suas moedas pediu desculpas ao velho por te-lo confundido com um mendigo e seguiu sua rota pensando em tudo o que o velho dissera. Naquele dia ele queria ser um marido mais amoroso e um pai mais presente.

Ele voltou pelo mesmo caminho e deu com uma multidão, olhou assustado o lugar onde o velho estava sentado quando um vento forte jogou seu cigarro longe. Seguiu a guimba com os olhos e viu que ela parou perto do amigo que estava estranhamente imóvel, se aproximou para ver melhor abrindo caminho entre a multidão.

O velho estava morto, em seu chapéu tinha uma flor branca e seu cachimbo estava aceso. O homem desabou em um pranto sentido com alegria e comoção. Chegou em casa, beijou sua esposa como jamais a beijou e aos seus filhos disse o tanto que eles eram importantes para ele.

Naquele dia ele percebeu o quão bela pode ser a morte quando a vida é cheia de amor.




Direto na têmpora: No surprises - Radiohead

terça-feira, setembro 17, 2013

Fome

A vida come sonhos no café da manhã e devora planos perfeitos no almoço.

Para o jantar, um ou dois amores eternos, nada mais.

É que a vida não se permite ficar gorda e farta, prefere ser de um magro quase triste, curta e suficiente.

A vida é escassa em regra, quase sempre, quase para todos, e é preciso celebrar a opulência dos momentos (alguns, enfim) para poder ser feliz.
 
 
Direto na têmpora: Recover - Chvrches

segunda-feira, setembro 16, 2013

Esmola

Passou ao lado do mendigo e, sem olhar, tirou a nota de dois reais da carteira e jogou displicentemente na vasilha de plástico que jazia à frente do senhor sujo e de cabelos brancos. Vinte passos à frente, entrou na cafeteria e, ao abrir a carteira, deu falta da nota de cem que havia sacado mais cedo.

- Entreguei pro mendigo por engano.

Imediatamente, quase por reflexo, olhou em volta. O maltrapilho havia sumido e levado sua grana. 

Que descuido! Não que o dinheiro fosse fazer falta, ele andava bem de vida com o novo salário, mas dava raiva demais um ato tão bobo custar tanto.
A raiva começava a subir junto com o café que ele bebia amargamente. Quem mandou ser bonzinho? Quem mandou querer ajudar e dar esmolas pra um vagabundo qualquer? Um grande otário de coração mole, era isso que ele era.
Sentia o rosto queimando de vergonha e frustração e já não olhava para os outros. Abriu o jornal que trazia com ele e fingiu ler alguma coisa para evitar que percebessem, por alguma arte mágica, como ele havia sido burro.
De repente, uma voz grave ecoou pela cafeteria.
- Ô, menina, vê aí um outro café pro dotô e pode colocar um pão de queijo também, viu?
Virou-se e deu de cara com o mendigo sorrindo seu sorriso pobre em dentes, um gigantesco buquê de rosas vermelhas na mão.
- O lanche hoje é por minha conta, dotô, pode aproveitar.
E antes que pudesse esboçar qualquer reação, sentindo-se observado pelo planeta inteiro, ouviu o outro dizer ainda, cheio de simpatia genuína.
- E as flores são pra patroa. Fala que eu mandei um beijo pra ela. O nome é Francisco, viu? 




Direto na têmpora:  Block after block - Matt & Kim

quinta-feira, setembro 12, 2013

Brinquedos

Meu brinquedo favorito era uma bola de couro pesada demais para a força das minhas pernas. E ainda assim eu enchia o pé e achava que eu era o Rivelino vendo a redonda avançar poucos centímetros. 

Meu brinquedo favorito era um capacete de bombeiros muito grande para a minha cabeça que eu tirava dos olhos enquanto dizimava incêndios e salvava vidas sem nunca deixar de fazer eu mesmo a sirene. 

Meu brinquedo favorito era um Forte Apache em que eu era os índios e os soldados e montava estratégias e mudava os rumos da batalha com um único herói desgarrado que avançava sozinho e vencia tudo. 

Meu brinquedo favorito era ver Sophia brincando. Jogando as bolinhas que faziam barulho, puxando o carrinho que acendia luzes, ninando a Minnie como se fosse um bebê. 

Meu brinquedo favorito é ser pai, é dizer pra ela que vá, é pedir a ela que fique, é fazer carinho, é olhar no olho, é ganhar um beijo, é contar histórias. Meu brinquedo favorito é o hoje, meu brinquedo favorito é pra sempre, meu brinquedo favorito é a vida.




Direto na têmpora: One for the road - Arctic Monkeys