segunda-feira, novembro 11, 2013

Frutas

Ah, minhas crianças, venho aqui lhes dizer que as frutas não nascem das gôndolas.


Venho contar como é bom catar amoras no mato e voltar pra casa inteiramente roxo, manchado até debaixo das unhas, com a roupa inutilizada, a barriga saciada e a alma lavada.

Como é bom aprender a usar uma faquinha inocente para “cascar” laranja sem estragar a casca e depois girar recitando as letras do alfabeto pra ver em que letra ela arrebentava. E essa letra, duvido que vocês saibam, crianças, seria a letra da pessoa com quem você iria casar.

Como é bom subir num pé de jabuticaba e ir “pocando” as cascas com os dentes e cuspindo os caroços no chão, deixando sementes de novas árvores e novas infâncias.

Como é bom ver as mangas “madurarem” quando chega a hora, comer o jambo oco e perfumado debaixo de uma sombra, torcer pra chegar o tempo de pitanga, fazer careta com a carambola roubada ainda verde da casa da esquina, gostar mais de um vizinho do que do outro porque na casa dele tem pé de ameixa japonesa.

Ah, minhas crianças, as frutas não são produtos em oferta, não brotam em bandejas, não vêm do outro lado do mundo a preços com muitos zeros. Isso são outras coisas.

As frutas, meus pequenos, são casca, caroço e caldos. São delícias lambuzadas, catadas, divididas, esperadas. São indicações e pontos de encontro “debaixo da bananeira”, “depois daquele lote que tem limão-capeta”, “a casa do Fulano é a que tem um cajueiro bem na entrada”.

Ou talvez não sejam mais isso. Talvez só existam descascadas e picadas no prato, na lancheira que vai pra escola, na gondola, na feira, no sacolão.

E se for assim, tudo bem, porque esse mundo não é mais meu. O meu ainda tem, e sempre terá, uma mão esticada, um corpo equilibrado, um olhar fixo na amora mais alta, aquela pretinha, madurinha, perfeita pra fazer o dia.
 
 
 
 
Direto na têmpora:  Sacrilege - Yeah Yeah Yeahs

sexta-feira, novembro 08, 2013

Duas coisas

Raso o bastante para não se afogar. Fundo que sirva para aprender a nadar.

Perto o bastante para poder voltar. Longe que justifique a vontade de chegar.

Simples o bastante para tirar o ar. Complexo demais para se tentar explicar.

Uma coisa e outra.

Duas coisas e uma.

Dois caminhos e todos.





Direto na têmpora: My moon my man - Feist

Madri

Madri, a cidade dos sonhos do casal. Juntaram grana por três anos até terem condições de fazer aquela viagem da maneira correta: lugar na primeira classe, hotel cinco estrelas, reservas nos melhores restaurantes. Compraram uma câmera nova, os guias mais descolados e ela ainda deu aquele upgrade nas roupas que iria levar dentro da mala recém-adquirida.

O primeiro dia foi perfeito. Temperatura amena, céu azul, caminhando pelas ruas e parando para beber um bom vinho espanhol e saborear uns tapas. Um jantar romântico, uma lua cheia e uma noite perfeita na suíte gigantesca deram o toque final no início maravilhoso de viagem.

Manhã seguinte, após um café da manhã leve e saborosíssimo, saem felizes do hotel, mãos dadas, sorriso no rosto. Ela observa as ruas e ele, involuntariamente, segue por alguns segundos o decote de uma madrilenha de parar o trânsito da união europeia inteira.

Escapou rápido da distração e virou-se para dar de cara com o olhar furioso da mulher. Ainda tentou disfarçar:

- Bonita, né?

A resposta foi um silêncio gelado que durou o restante da viagem inteira. Os 5 dias seguintes seguiram-se protocolares, distantes, sem emoção alguma por parte dela e cheios de olhares pidões, piadas e presentes por parte dele.

Na última noite ele, desesperado para consertar tudo o que aquele olhar rápido e inconsequente havia estragado, fez uma loucura e comprou um colar que sairia praticamente pela metade do que havia custado a viagem inteira.

Na mesa do café da manhã ele então entregou o colar junto com o mais sincero e profundo olhar de arrependimento.

Ela então desabou a chorar e deu nele um abraço apaixonado e arrependido. Imediatamente ele soltou o discurso de improviso:

- Tudo bem, meu amor, eu entendo. Ciúmes é um negócio normal. Eu é que me sinto péssimo por ter estragado nossa viagem com essa bobagem. Justo eu, que tenho a mulher mais maravilhosa do mundo ao meu lado...

Então, antes que ele continuasse, ela interrompeu.

- Não é por isso que eu estou chorando, Julio. É que eu só queria voltar no tempo para não ter jogado sua passagem no rio Manzanares naquele dia em que eu vi você olhando para aquela mulher.

E assim foi, ela de volta pra casa e Julio dormindo três dias no aeroporto para economizar com hospedagem e conseguir pagar o colar que havia comprado.




Direto na têmpora: Trophy Wife - The National

Nomes

Maldita memória. Como ele pôde esquecer o nome daquele menino que fazia natação com ele? Fernando? Bernardo? Eles foram melhores amigos desde bem pequenininhos até os 13 anos de idade, quando o garoto mudou-se para Vitória.

Ernesto? Rodrigo? Re… Ro… o nome com certeza era com “R”. E o sobrenome… com “C”! Não, com “G”, isso, certeza de que era com “G”.

Rogério Gomide? Reinaldo Gouvêa?

Os dois passavam o final de semana brincando no clube, poxa! Ele tinha uma irmã mais nova que usava óculos grossos e o pai tinha um Opala.

Roberval? Não, claro que não era Roberval.

A mãe era dona de casa e fazia um bolo de cenoura absurdo de bom. Era torcedor do Guarani de Campinas, olha só que loucura.

Rinaldo Gonçalves? Rubens Guimarães?

Renato! Isso, o nome dele era Renato. Renato Guerra? Renato Góes? Renato Gomes! Pronto, agora tinha certeza, Renato Gomes era o nome do amigo.

Virou-se para o computador e começou uma busca frenética. Google, Facebook, LinkedIn e dá-lhe milhares de Renato Gomes, mas nenhum que fosse seu velho colega de infância.

Ficou horas nessa obsessão infrutífera até que o chefe chamou sua atenção.

- E aí, Marcelo, cadê o relatório?

Chamado ao dever, esqueceu o assunto e seguiu seu dia com as tarefas chatas e repetitivas de sempre.

À noite, deitou-se exausto e dormiu rápido. Foi acordado no meio da madrugada com um momento de clareza: Henrique Costa! Nem Renato e nem Gomes, Henrique Costa era o nome do coleguinha. O bom e velho Henrique Costa, como poderia esquecê-lo?

Levantou da cama em um salto para o susto da mulher e partiu para o computador rumo a mais uma longa busca através de uma infindável selva de homônimos. Não importava, daquela vez ele estava seguro de que acharia seu amigo perdido, o grande Henrique Costa.

Infelizmente o nome certo não era esse, era Henrique Castro. E Marcelo nunca mais soube dele.

Maldita memória.




Direto na têmpora: Simmer Down - The Specials