quarta-feira, janeiro 20, 2010

Comensais

I

Os quatro estavam na sala, conversavam com simpatia, mas alguma reserva. Em cada rosto um pouco de ansiedade, dúvida talvez em um olhar. Conheciam-se há muito pouco tempo para intimidades e sabiam que aquele encontro não era uma situação social comum.

Falavam sobre o preparo de um certo tipo de mariscos muito apreciado no litoral sul italiano quando F contorceu-se brevemente e com um grunhido curto foi ao solo. Os três se entreolharam sem saber muito bem o que fazer. Esperavam pelo fato, mas agora sentiam-se confusos, como se nunca houvessem pensado no próximo passo.

Ficaram assim por alguns segundos até que X falou: “melhor começarmos. Não sabemos quanto tempo vai demorar e o jantar é amanhã”.



II

Um gourmet amador, X sempre se opusera secretamente ao fato da antropofagia ser considerada um tabu. Lógico que era contra o canibalismo não consensual, mas se ambas as partes estavam de acordo ou tratava-se de um cadáver, por que não? Qual seria o sabor da carne? Quais os temperos mais adequados? A variedade de pratos e receitas seria ilimitada.

Não se alimentar de alguém da própria espécie era, na opinião de X, apenas fruto dos pudores de nosso tempo. Afinal, se é aceitável doar órgãos para transplantes que salvam vidas, por que não usar os mesmo órgãos para alimentar os famintos e, em última instância, salvar vidas?

No entanto, foi apenas a alguns meses que X começou a pensar seriamente no assunto. A parte mais difícil seria encontrar pessoas com os mesmos interesses. Depois do escândalo público que se tornou o encontro de Armin Meiwes e Bernd Jurgen Brandes em março de 2001, quando o primeiro jantou o segundo (com seu consentimento expresso em vídeo, diga-se de passagem), o tema antropofagia estava bastante vigiado na web e nos jornais.

Entrou em alguns sites de culinária experimental deixou recados dizendo que procurava contato com “pessoas sem preconceito, com interesse em conhecer novos sabores, ingredientes exóticos”.

As primeiras respostas foram desanimadoras. Pessoas claramente provincianas, com aquela velha carapaça moral que X conhecia bem. Na segunda semana, o email de F chamou a atenção. Dizia apenas “até onde você pensa em ir?” Estava descoberto o segundo membro do grupo.



III

O outros dois participantes surgiram mais ou menos da mesma forma que F. Os quatro passaram a manter um contato regular, insinuando-se, jogando um pouco até que, após algumas semanas de correspondência intensa via email, um deles mencionou explicitamente o assunto. A partir daí passaram a tratar do tema apenas através de telefones fixos, dificultando qualquer interceptação de mensagens que pudesse comprometer seus planos.

F havia descoberto uma receita de Pozole Rojo, um prato asteca que, segundo dizem, era feito com carne humana ou de porco. Haviam lido alguns depoimentos que se referiam ao sabor da carne humana como adocicado, mas preferiram, na primeira refeição, tentar algo “consagrado” ao invés de experimentar temperos já testados em outras carnes.

Marcaram o primeiro encontro ao vivo na cidade de P. Discutiram ali os detalhes e definiram-se por serem o mais simples possível. Tudo aconteceria no sítio de X, um local sossegado, afastado e com uma bela cozinha. Sentariam-se aleatoriamente e um garçom (que apenas serviria os drinques e seria depois dispensado) colocaria uma taça na frente de cada um. Uma dessas taças conteria o remédio insípido que escolheria o único participante a não saborear o jantar.

Já que não sabiam quem seria o “prato principal” todos escreveriam, antes do encontro, um testamento e uma autorização para que seu corpo fosse usado como refeição. Depois dividiriam as tarefas de destrinchar o corpo, retirar os órgãos, separar e eliminar os dejetos. A carne necessária para o Pozole ficaria guardada no freezer para ser preparada no dia seguinte. O responsável pelo preparo seria o que estivesse sentado à direita do “escolhido” no momento que o veneno fizesse efeito.

Tinham tudo planejado. Uma nova fronteira se abria.



IV

Depois do instante de susto, recolheram F e puseram-se a trabalhar. Era o mais leve dos quatro e um dos mais jovens, o que parecia um bom presságio. O processo não se deu sem algum desconforto ou dificuldade, mas conseguiram separar as carnes e colocá-las no freezer antes da s 3h da manhã. Em seguida foram dormir, silenciosos, mudados.

Dormiram quase toda a manhã e à tarde P começou a preparar a refeição. Os outros dois ajudavam, entre ansiosos e tensos, mas às 19h já se banhavam e vestiam. Pontualmente às 21h30 P começou a servir a mesa enquanto X trazia o vinho.

Brindaram a F, que tão generosamente havia se doado e, após um momento de hesitação, começaram a servir-se. Antes de colocar a primeira porção na boca, P largou o garfo, tentou levantar-se e caiu logo em seguida. M esticou as mãos na tentativa de ajudá-lo, mas também quedou-se como que paralisado em pleno ar, o corpo amparado pela cadeira de espaldar alto, os olhos vazios.

X serviu-se calmamente e saboreou sozinho, entre suspiros de prazer, o Pozole de F. Terminado o jantar, repetiu os procedimentos de limpeza dos corpos e encheu o freezer. Durante aquela semana preparou e consumiu os mais finos manjares que sua imaginação permitia, deixando o sítio apenas para comprar novos ingredientes.

Após consumir o último bocado do suave Rôti de M, servido com frutas que havia preparado, X foi à cozinha, buscou a garrafa de vinho que havia servido aos comensais e tomou em largos goles, direto do gargalo. Sua última refeição havia sido exatamente como planejara. X era, enfim, um homem feliz.



PS - Este foi mais um conto antigo que achei nas minhas coisas. A partir de amanhã volto a produzir material inédito. Obrigado pela paciência.




Direto na têmpora: About today - The National

6 comentários:

Unknown disse...

Não comentei no outro, mas o li também e adorei.Vc tem uma maneira de escrever que deixa a leitura gostosa.O 1º conto eu me lembrei de Nelson Rodrigues, ficou show.Esse agora eu li até o final pq vc instiga no seu texto a curiosidade, mas eu tinha acabado de almoçar, confesso que fiquei meio enjoada!!!rsrsrsrsrs Mas achei o final muito bem bolado, não esperava ser assim.Parabéns e continue postando,novos, antigos...

redatozim disse...

O outro conto lembra mesmo Nelson Rodrigues, Ilda. Isso é bom pela referência, mas me preocupa pela falta de originalidade do estilo e/ou do tema.

Agora, esse aqui pra ler depois do almoço é meio contraindicado mesmo rsrsrs

ndms disse...

É a primeira vez que o leio e gostei muitíssimo. Muito bom!!!

redatozim disse...

Valeu, ndms. Bom que gostou.

Renata disse...

Leio tudo e divirto. Adoro. É mais um momento bom no dia. Estou aguardando os próximos.

redatozim disse...

Assim que eles forem chegando na cabeça ou vou colocando aqui, Renata. Valeu.