quarta-feira, janeiro 12, 2011

Maria Neves: minha bisavó, mãe de todo mundo

- Ô, Jardim, você tá mais gordinho... o que é que tá acontecendo, hein?

- Eu? Gordinho? Que é isso, mulher?

- Ora, não desconversa. Olha esse uniforme, mal cabe em você!

- Deixa de ser boba, mulher, isso aí encolheu porque você não sabe lavar direito.


Ela então ri com gosto.

- Ah, Jardim, Jardim... sua boca fala uma coisa, mas sua barriga diz outra. Fala a verdade, isso é doce de Dona Maria Neves que você anda roubando, não é não?

- Quê? Doce? Para com isso, mulher! Doce... onde já se viu? Roubar doce, eu?


É muito provável que o diálogo acima nunca tenha acontecido, mas pensando bem, sabe que pode ser que tenha sido bem próximo disso? É que Dona Maria Neves, minha bisavó, era uma vítima recorrente do Sr. Jardim, um carteiro de tempos mais antigos que sempre roubava alguns doces de figo cristalizados que costumavam secar nas janelas da velha casa da Rua Xavier da Veiga.

Aliás, o Sr. Jardim não era o único. Estudantes das repúblicas mais próximas e jovens vizinhos também não resistiam àqueles pedacinhos verdes de tentação cobertos de açúcar que ficavam atraindo os passantes como moça bonita, daquelas bem namoradeiras, aboletada na janela.

Eu confesso que também já roubei minha cota de doces de figo, doces de nozes e, é claro, dos deliciosos biscoitos de Maurilo (batizados em homenagem à minha paixão desmesurada por eles). Mas era um roubo sem necessidade para um primeiro bisneto e afilhado que era recebido sempre com um abraço e com a frase ao pé do ouvido “coloca a mão no meu bolso”. Quando eu colocava, saía cheio de balas Erlan entre os dedos e ela completava “se quiser mais é só vir me abraçar”.

Isso sem falar que na casa de Vovó Maria tinha penico ao lado da cama, tinha assoalho com frestas pelas quais se via o galinheiro, tinha aquele frio perfeito de Ouro Preto, tinha cama de mola, tinha família reunida e poste de ferro bem na frente da porta da entrada.

A verdade é que aparte toda a diversão e toda a doçura que a memória empresta ao que se amou, minha avó Maria (que eu nunca chamei de bisa) foi das mulheres mais fortes que já conheci.

Vovó Maria nasceu em São Caetano, hoje Monsenhor Horta, mas mudou-se para Ouro Preto ainda moça. Em Ouro Preto casou-se com Levindo Barbosa Leite, que também veio de Monsenhor Horta e era comerciante na cidade.

As certidões dizem que vovó Maria teve 7 filhos, mas isso é bobagem. Foram dezenas. Não faltaram irmãos, netos, amigos e vizinhos para que Dona Maria pudesse abrigar sob suas asas e cobrir de atenção, conselhos, carinho e, é claro, broncas. Muitas broncas.

Ah, sim, porque não se engane você pensando que Dona Maria Neves era dessas avozinhas de novela que se deixam no sofá e assistem a tudo calmamente sem mover um dedo. Ah, mas isso não, senhor.

Dona Maria Neves foi Inspetora de Alunos na antiga Escola Normal Oficial de Ouro Preto, meu amigo.

Dona Maria Neves viu o marido ir a falência e trabalhou como uma leoa vendendo seus trabalhos de crochê e à máquina, meu irmão.

Para os casamentos de dezenas e dezenas de noivas, Dona Maria Neves cansou de fazer salgados, doces, bombons, sempre com as bandejas enfeitadas pela amiga Hyara Tonidandel. Sem falar no seu famoso bolo com recheio de nozes, artisticamente confeitado por D. Eliza Alves de Brito.

Dona Maria Neves trabalhou dia e noite para fazer doces e salgados que abasteceram, ao longo de sua vida, as festas e os estômagos das famílias mais requintadas da região; os alunos da Escola Técnica Federal de Ouro Preto e os carnavais do 15 de Novembro, da Associação Comercial e do CAEM.

E daí? E daí que Dona Maria Neves aprendeu com a necessidade o valor da disciplina. Aprendeu com a adversidade a hora de apoiar e a hora de cobrar. Aprendeu com a vida que se doar não é uma opção: é uma obrigação.

Era um caso sério essa tal Maria Neves. Vaidosa, usava sempre saia e casaquinho e tinha pernas de moça mesmo aos 80 anos. Era louca por queijo Palmira, era louca por cinema, era louca por novelas e foi a mulher mais sã que já conheci.

Como amava as pessoas essa tal Maria Neves e sua casa de portas abertas para estudantes, turistas, amigos, equipes de filmagem e qualquer um que se apresentasse. Como amava e como foi amada. Eu, menino ainda, tinha ciúmes dessa avó/bisavó que era de uma cidade inteira. Bobagem minha. No coração de Dona Maria cabia quem soubesse chegar.

Voltando às datas e certidões e fatos, Dona Maria Neves nasceu a 18 de maio de 1903 e morreu em 1 de janeiro de 1986, aos 82 anos. Da sua morte me lembro de muito pouco, mas foi minha primeira perda de alguém realmente amado.

A lembrança mais forte que tenho é dos adultos chorando ao lado da cozinha. Sim, ao lado da cozinha, misturando lágrima, lembrança e o cheiro algo mágico das mais doces delícias. E foi exatamente como deveria ter sido.

Mas não foi o fim, porque a presença é algo que não se interrompe com algo tão bobo quanto a morte. Maria Neves existiu no jeito aparentemente sóbrio e intensamente alegre de minha Tia Avó Ilka. Maria Neves existe na vitalidade imensa, nos quitutes divinos e no amor que não mede palavras da minha Tia Rosa. Maria Neves para mim sempre existirá no cuidado que move céus e mundo de minha mãe Wanda.

Serei eu um pouco Maria Neves? Quem me dera, sou fraco. Mas imagino ainda assim uma cena em que o velho carteiro Jardim se une a um arcanjo mais saidinho e vão os dois juntos, pé ante pé, roubar os doces de figo celestiais que Vovó Maria deixa secando em alguma janela do Éden.

Ela briga, espinafra, mas no fundo então ri. E eles riem também. Mas que fique aqui o aviso, enquanto falamos dos doces de figo, está tudo certo, está tudo bem. Mas se algum anjinho metido, mesmo que seja o tal Gabriel, resolver roubar uma fornada quentinha de biscoitos de Maurilo a coisa muda de figura.

E aí é melhor se prepararem, porque eu não sou Maria Neves, mas vou aí em cima e acabo na hora com essa pouca vergonha.




Direto na têmpora: Just don't love you - Carbon Copies

8 comentários:

Fê disse...

Sempre que escuto ou leio este texto que fez pra sua bisa, me emociono...É lindo!!!

redatozim disse...

Obrigado, Fê. Beijo.

Bruninha disse...

Bruninha curte aqui tb! :)
Adorei o texto amigo, super emocionamente mesmo!
bjos

redatozim disse...

Valeu, Bruninha. Beijão.

Duda de Oliveira disse...

Sei lá quantos parágrafos. Perdi a conta dos arrepios. Muito bonito, viu? :)

redatozim disse...

Muito obrigado, Duda. De verdade.

Ju Soares disse...

Consegui sentir o abraço dessa avó e o cheirinho gostoso das guloseimas. Cada dia fico mais fa sua. Ao ler seus textos consigo escutar sua voz contando cada detalhe. E os causos que conta sao excelentes.

redatozim disse...

Valeu, Ju! Muitíssimo obrigado mesmo!