sexta-feira, setembro 10, 2010

Orestes*

O céu ali era de um azul acinzentado durante todo o dia. Não importava quanto o sol brilhasse, parecia sempre haver um filtro que bloqueava a luz e mudava as cores, deixando tudo num tom pastel, meio fosco, como se fosse a vida impressa em papel pardo. Ali o Orestes nasceu, sem nunca sair do ranchinho do seu avô (mãe morta no parto, pai morto por picada de jararaca).

Se acostumou com o frio da chuva no lombo enquanto carpia e com a brasa do meio-dia esquentando sua marmita pouca. Parecia que sua boca sempre só havia provado as sobras da roça de cará e o gosto-meio-sem-gosto de um naco mal cozido de carne de bode.

E foi em um dia igual a todos os outros que o Orestes juntou vista na Sensata. Foi um olhar longo e tristonho como quem vê o mar e descobre nele a perdição do infinito, não a beleza.

Sensata era a filha de um ex-seminarista, hoje boticário de situação um pouco melhor, que vivia ali perto de Ipaba onde o leite já chega de caminhão e não mais em lombo de burro.

Naquela noite o sono lhe custou horas de Salve-Rainha e deu-lhe a certeza de que Sensata era algo demasiado grande para um lugar como sua mente.

Nos próximos dias, pensou milhões de vezes em tomar o rumo da casa do ex-seminarista e fingir interesse na salvação de sua alma apenas para poupar o corpo do flagelo que era a distância de Sensata. Em suas orações já não rezava, mas pedia, implorava pelo fim daquele tormento fosse como fosse.

O avô percebia seu desassossego, pressentindo uma adolescência tardia naquels 27 anos que só haviam conhecido o amor de duas ou três cabritas desgarradas na estrada (com as do avô seria pecado). Orestes, calado de forma e feita, sumia-se agora de vez dentro de si, evitando as já raras conversas com o velho. Dentro do casebre de lama seca e pau-a-pique o silêncio era quase um terceiro morador.

Quando o avô morreu sem sintoma, gemido ou esboço de dor, Orestes fez como haviam feito com o pai, enterrando a carcaça sob um manto de poeira e pedregulhos a alguns passos do bambuzal. Não houve pranto, nem missa, apenas uma aceitação muda e um pedaço de futuro novo que se insinuava na sela sobre o lombo do burrico.

Não via mais função ali e, apesar de não conhecer caminho que fosse dar em algum lugar, teria o rosto de Sensata a lhe guiar. Selou o animal e partiu para cortar as poucas léguas que os separavam.

Já na curva que antecedia Ipaba ouviu o barulho de foguetes, gritos, risadas e toda uma sorte de sons que não eram os seus.

Suas vistas encontraram a torre da igrejinha; as folhas do alto das árvores; os primeiros contornos da praça; as pessoas em roupa de domingo (para Orestes não havia domingo, era função dele cuidar da terra enquanto o avô se ocupava do mundo); os sorrisos; Sensata toda de branco acompanhada de seu pai, flores na mão e outro homem a lhe segurar o braço.

Confusão em sua mente. Não era Sensata a fuga, o caminho, o prenúncio do Orestes que ele nunca fora?

Apeou ao largo da festa e caminhou em direção a Sensata ainda se inteirando daquele mosaico todo novo de cheiros e cores. Turbilhão.

Com o canivete ganho do pai abriu-lhe a garganta com os gestos mecânicos de quem matou todo um mundo de bodes. O noivo recebeu o golpe único no coração e a si próprio inflingiu um corte profundo na barriga.

Silêncio. Sem pranto, missa ou manto de poeria perto do bambuzal. A última vida que Orestes viveu terminou apenas com a sensação indistinta de ir-se.

E foi.



* Mais um texto do falecido Incultos.




Direto na têmpora: In a cave - Tokyo Police Club

6 comentários:

PC disse...

Fui primeiro no dia errado.
Paciência.
Também, mó vagaba essa sensata...

redatozim disse...

Orestes, Sensata, tudo povinho esquisito, PC.

Anônimo disse...

De Carne (de Sol), com queijo minas, 10. Off-topic, via FB: listei 15 sons, mas não entendi bem as regras, até porque apanho muitos dessas redes (nem tenho orkut, tuiter etc.), tenho blog - puracatapora.blogspot.com e cheguei até aqui através do grande Jonga (q só conheço virtualmente).
meat is murder - smiths
unforgettable fire - U2
highway to hell - ac/dc
xriaturas da noite - o terço

redatozim disse...

Jonga, o Don Oliva é nota 10, Anônimo. Boa a sua lista. Gostei muito.

PC disse...

E quer saber o que mais:
esta história está me dando o mó medo.
Fiquei pensando se o cara não é só sua identidade secreta. Ou de alguém que você conhece.
Fosse eu um menininho, estaria chorando, na barra da mamãe...

redatozim disse...

Você sabe que essas coisas são sempre inspiradas em alguém, né, PC? Be afraid, be very afraid.