O inverno em Liras de Sintra avistava-se do mar, em certas brumas morosas que davam novas e conhecidas cores ao cair do sol. Ao chegar, trazia um frio sem neves, mas que alojava-se sob as roupas e nem o crepitar de algum fogo vivente fazia amainar.
Os céus ainda mais azuis, os telhados ainda mais acanelados, os rostos ainda mais marcados, adquirindo novas rugas e dores nos dias monótonos que teimavam em ser sempre o mesmo.
Na entrada do pequeno bosque das oliveiras que marcava a cidade ao sul, propriedade não sua, morava Inês Velho Brandão. Ao seu lado, um cachorro algo perdigueiro, de longas sestas no alpendre e parcos carinhos pedidos.
Mulher de poucas falas, o lenço permanente atado à cabeça e um sorriso incompleto e curto, Inês fazia de satisfazer os viajantes sua ocupação. Já fora mais requisitada e de uma destas visitas restou José, o filho único de pai nenhum.
Hoje, sustentam-se mais pela caça do que pelo amor. A José, a morte vem por instinto e Inês cansa mãos e olhos nas longas noites em que arranca peles e estripa os coelhos prodigamente abatidos e vendidos em feiras de domingos. Sentem um pelo outro a necessidade de uma companhia, mas ninguém ousaria dizer amor.
Um dia morrerá o cão e José partirá atrás de algo maior. Inês será novamente só ela e não mais venderá o corpo. Roubará azeitonas, pedirá um auxílio, olhará a cidade onde sempre esteve e nunca viveu. Na casa não baterão mais viajantes e Liras de Sintra já dela não se lembrará.
Direto na têmpora: I don't like mondays - Boomtown Rats
5 comentários:
Muito bonito o conto, porém, muito triste ( estranho, verdade ?
Muitas coisas são assim, ndms, bonitas e tristes. Valeu o elogio.
Consegui ? ( 24.000 )
Sem dúvida, Liras de Sintra é um sítio a não perder.
Gostei do nome “Inês Velho Brandão”... e da frase “cachorro algo perdigueiro, de longas sestas no alpendre e parcos carinhos pedidos”, inclusivamente “... filho único de pai nenhum”.
E quando dizes: “... a morte vem por instinto e Inês cansa mãos e olhos nas longas noites em que arranca peles e estripa os coelhos prodigamente abatidos e vendidos em feiras de domingos...”
Sabes mais como portugueses a falar... ó pá! Diria eu que estou a ler um texto escrito por quem regista a dor profunda d’alma lusitana.
"Óh, deus, ih, ué!!!"
Don Oliva, mesmo sem ter nunca ido, sabe que o "clima" português me atrai muito? Pode ser isso. Ah, quem bom que gostou.
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