quarta-feira, setembro 19, 2007

Primeiro capítulo de algo

Em Portugal existe ainda um lugarzinho chamado Liras de Sintra. Um olho salgado de mar, outro que espia certas uvas raras que dão bons vinhos e se encarapitam em bruscas encostas. Liras de Sintra é daqueles sítios onde se vive como se fez o viver em épocas dos livros de histórias: fala-se muito sobre o alheio, pesca-se sardinhas a modas já esquecidas, colhe-se a oliveira e embriaga-se do próprio vinho (ou numa hipótese melhor, do vinho de um vizinho mais desprendido).

Azulejada de uns tantos azuis de um escuro sóbrio, Liras se amorena no topo das casas. Uma olaria à chegada dali ocupa-se em produzir telhas de um vermelho acanelado, com algo de índias e especiarias. Obram para si próprios e, ao fim de curtos períodos, reúnem-se todos para remoçar os telhados e avivar os primeiros encontros que se tenham com desconhecidos ou velhos conhecidos. Não é único o relato que credita a esse particular o cheiro de barro fresco que amaina sedes de quem por ali pisa.

Quando os mouros estiveram em Liras de Sintra deixaram uma mesquita muito branca, onde após convertidos todos de uma só vez em milagre famoso e cantado aos ventos, criaram o hábito de celebrar as missas cristãs em latim e árabe. Alguns lugarejos vizinhos, tomados de soberba e malícia, passaram a chamar os de Liras de “mouros em terços”, alcunha injusta e impudica que o povo local firmemente rejeita.

E assim vive-se por ali, à margem do que nos convém chamar tempo. E assim pode-se encontrar, em modesta e firme casa à subida da Ladeira das Dores, João de Torres Madeira, alfaiate e um seu criado, disponha. De ternos de linho, coletes de lã e redes de pesca fazia-se o grosso ofício de João Madeira. Trazia nas agulhas não o gênio de cortes e estilos, mas o preciso saber de como é o vestir em Liras de Sintra.




Direto na têmpora: O sol - Bonsucesso Samba Clube

10 comentários:

Rubens disse...

Muito bonita a descrição de Liras de Sintra. Dá vontade de conhecer.

Anônimo disse...

Olhos e espelhos d'alma lusa, por lágrimas tantas outras vezes derramadas, no mais sereno entardecer de cores mil.
"Oh deus, ih, ué!"

A última frase (entr'aspas) é de Gil Vicente, tão importante para nós, quanto Shakespeare para os anglos.

redatozim disse...

Obrigado, Rubéola, mas que eu saiba não existe não. Pelo menos toda a descrição e até o nome foram criados às 2h da manhã de uma segunda-feira insone. Se existe é o subconsciente piando alto.

redatozim disse...

E a primeira sem aspas é de Don Oliva?

Lilica Mora Aqui disse...

Uia! Em outubro irei a Portugal, entrei aqui para pedir o endereço. Salve, que insônia produtiva.

redatozim disse...

Ô, Lilica, coisa boa ver que você achou meu blog por acaso. Só acho ruim ter te decepcionado com Liras de Sintra, mas quem sabe eles animam por lá e fazem uma cidadezinha assim?

Eduardo César e Melo disse...

Acho que não irei mais para Parságada.

redatozim disse...

Bem vindo a Liras de Sintra, Edu!

Anônimo disse...

Foste extremamente feliz na criação de uma vila portuguesa. "Liras de Sintra" (até, e principalmente pelo nome) parece mais real do que fruto de uma viagem na ficção.
Eles têm cidades com nomes curiosos como "Montemor-o-Velho", ou "Freixo-de-Espada-à-Cinta".
Basta que pegue um mapa de Portugal e verá cada nome...

redatozim disse...

Cara, foi realmente uma feliz coincidência. Quem bom que tenha ficado bacana. Agora, os nomes portugueses são realmente geniais, tanto de cidades, quanto de gastronomia. Aliás, você já postou sobre a parte alimentar lá no Pensatas.