I
Na rua Belisário Cortez, bem ao lado da funerária, ficava o Bar do Neco. Na esquina de baixo, a rua da zona com suas casinhas em seqüência, quase todas de paredes cor-de-rosa ou verde-claro, cortesia das tintas distribuídas há uns 6 ou 7 anos por um comerciante local que queria melhorar o aspecto da região.
Era uma rua asfaltada, limpa, de iluminação amarelada. O movimento já fora bem maior e hoje as mulheres exageradamente maquiadas e exiguamente vestidas chamam menos a atenção do que os avisos de “residência familiar” dependurados em alguns portões para evitar as confusões dos bêbados ou novatos durante a madrugada.
Todas as quartas o Renato saía do Bar do Neco depois de tomar uma cerveja com o pessoal da gráfica e descia a rua. O olho puxava para a esquina. Renato tinha 18 anos e não conhecia ainda uma mulher. Seu namoro com a Cida era sério e só sério, já que ela brecava suas vontades com um fervor religioso que refletia a educação e as cobranças da família. Olhava, o corpo adernava, imantado, mas o pudor vencia e Renato rumava pra casa com o passo calmo das noites de quarta-feira.
A avó já dormia, inundando a salinha de um ronco forte. Na geladeira um pedaço de queijo, um copo de leite e o corpo pedia cama. Escovava os dentes com uma pressa pouco higiênica e começava a rezar enquanto bochechava e preparava-se para cuspir o dentifrício: amanhã era quinta e quintas são dias bons.
Acordava com a avó cantando um samba antigo, o mesmo de todas as manhãs: “E quando à Terra eu voltar, sei que estão me esperando, numa prova de alegria eu vou chegar sambando”. Achava aquilo muito estranho, misturar samba com viagens espaciais e ainda mais com a avó cantando, mas gostava e sorria, era seu melhor jeito de começar a manhã. O pão quente com muita manteiga e o café forte enchiam o estômago e mandavam Renato pra rua. Quintas-feiras são boas.
II
Renato trabalhava com o Heitor, mas não gostava dele. Labutavam juntos e viviam uma intimidade obrigatória de quem convive exaustivamente no mesmo espaço. Heitor era mais velho, magro, com alguns dentes faltando na boca e uma cabeleira cinzenta, oleosa. Bom de serviço, mas falava demais, gabando-se de mulheres e bebedeiras, deixando Renato desconfortável.
Naquela quinta, Heitor recebeu Renato sorridente. Parecia mais moço, mais limpo. “Conheci teu pai” – disse o velho sem rodeios.
“Meu pai morreu, Heitor.”
“Eu sei, porra. Conheci quando ele tava vivo. Descobri por coincidência quando tava resolvendo uns assuntos lá no RH. O Gouvêa...”
“Gouvêa trabalhou com o meu pai.”
“Eu sei, caramba, deixa eu contar. O Gouvêa tava me enchendo o saco, falando que eu só trabalhei aqui a vida toda e aí ele disse, pra me provocar, ‘aquele Renato lá nunca ficaria aqui na sua idade. O moleque é esperto que nem o pai’. Aí eu estranhei e perguntei se ele conhecia o seu pai e ele disse que sim e falou que eu conhecia também.”
“De onde você conheceu ele?”
“Pois é, quando ele me falou que o seu pai era o Jorge do banco eu lembrei na hora. Eu tinha uma conta na agência e sempre pedia uns favores pro seu pai e pro Gouvêa. Não sabia que você era filho dele. Boa gente seu pai. Meio bundão, mas boa gente.”
“Bundão o caralho! Tá querendo levar uma porrada, Heitor?”
“Desculpa, moleque, mas é que a história do seu pai é foda, né?”
“Foda por quê?”
“O lance da tua mãe, porra, me desculpe, mas eu não engoliria.”
“Ah, vai à merda, Heitor.”
Renato saiu com um meio sorriso como se soubesse muito mais do que o Heitor sobre o assunto, mas a verdade é que não fazia nem idéia do que ele estava falando. Fugiu do assunto só pra não dar munição pro velho sacana. “Que merda de história será essa com minha mãe?” A única coisa que ele sabia é que a mãe bebia demais e que o pai resolveu largá-la e criar o filho sozinho. Por que o pai teria que ter vergonha disso? Bundão, porra nenhuma, o pai era um herói pra ele.
Foi do trabalho direto pra casa. Comeu pouco, ligou a tv e se largou no sofá. Não queria perguntar à avó sobre o assunto, ela podia não saber de nada, podia se sentir ofendida ou até pior, podia estar mentindo pra ele todos esses anos. Com o Heitor não dava pra conversar, filho da puta. Lembrou do Gouvêa no enterro do pai. Pra falar a verdade, o pai sempre elogiou o Gouvêa, pareciam ser bons amigos no trabalho. Mas daí a perguntar a ele sobre o passado da mãe? Sei lá, complicado.
Dormiu no sofá pensando que o Heitor era mesmo um bosta.
III
A cabeça estava ensopada, as coxas grudadas de suor, as mãos muito úmidas, parecia que ele estivera dormindo debaixo do sol em pleno verão. O relógio na parede marcava 3 da manhã, mas Renato sentia como se estivesse acordando depois de umas boas 12 horas de sono. Estava descansado e pronto. Não sabia exatamente pronto para quê, mas certamente estava.
Tomou um banho gelado e pensou na Cida. Gostava dela? Não sabia. Adivinhava um casamento longo, muitos filhos, a família dela mimando bastante, gostando de tudo. A família dela. Seria esse o melhor do namoro? Ele sem mãe de não se lembrar, sem pai desde os 14, sem irmãos, ele e a avó, só os dois há tanto tempo. Namorava a família dela? Não sabia, não imaginava, Renato se esquecia no frio do banho e já não pensava.
Vestiu novamente o pijama e deitou-se. Sonhou com a mãe ainda acordado, sabendo que sonhava. Era normal, feia ou bonita conforme a hora, séria, nunca sorrindo. A mãe no sonho era um antigo quadro de família que se movia, mas que não tinha expressão, não dizia nada. De repente sumiam-se e surgiam de novo com os rostos juntos, as mãos próximas, ela ainda fria, serena, ele todo sorrisos. Já não era um quadro, era uma mulher que se fazia quadro.
Acordou com o velho samba. A avó cantava pra ninguém “nesse trajeto de aventuras em desafio à emoção eu vi o medo, vi a cor do frio e a beleza da escuridão”. Será que ela sabia a poesia que cantava? Renato levantou pensando na mãe pela primeira vez em muito tempo. Sem saudade, só querendo saber o que o Heitor sabia dela. Imediatamente pensou no sorriso incompleto do velho e sentiu nojo. Sexta-feira, diazinho porcaria.
IV
Não queria procurar o Gouvêa logo de cara. O Heitor ia perceber e ia olhar pra ele com um jeito superior o resto da vida. Precisava esperar, brincar, fingir que estava acima, que provinciano era o Heitor de pensar mal da mãe dele por coisa tão boba. Precisava mostrar que sabia de tudo e não ligava, pelo menos até chegar a hora de falar com o Gouvêa.
O tempo passou depressa. Naqueles poucos dias Renato quase não foi ver a Cida, exagerava a proximidade com o Heitor e falava cada vez menos com a avó. Estava exausto. Consumia-se com aquela bobagem, não havia de ser nada, coisas da cabeça nojenta daquele pobre diabo. Na quarta-feira acordou com coragem. Iria falar com o Gouvêa. Quartas são os dias certos para se começar a semana.
“’Seu’ Gouvêa, boa tarde. Posso falar com o senhor um minutinho?” O coração batendo de culpa enquanto ele olhava o homem calvo com uma barba mal-feita por detrás da mesa que continuava conferindo uma folha de papel com alguma informação qualquer na tela.
“Entra, Renato, fica à vontade. É sobre as horas extras do mês passado?”
“Não, ‘Seu’ Gouvêa, é assunto pessoal mesmo, sobre meu pai.”
Gouvêa levantou o olhar com certa surpresa, mas já sabendo que o Heitor tinha falado alguma coisa.
“Pois não, Renato, pode falar. Gostava muito do seu pai.”
“É, ele também gostava muito do senhor.”
A cabeça não dava deixas de como iniciar a conversa. Renato quase desistia. Resolveu ser direto.
“O senhor conheceu minha mãe também?”
“Aquele babaca do Heitor. Filho da puta.” – pensou Gouvêa – “Conheci muito pouco. Eu e seu pai éramos colegas de trabalho, quase nunca a gente se via fora do banco. Por quê, Renato?”
“Nada não, andei pensando nela. Só isso.” – recuou.
Gouvêa aproveitou a chance: “Bom, se tiver mais alguma coisa aí que você precise...”
“Tá bom, obrigado ‘Seu’ Gouvêa.”
Saiu da sala sentindo-se um idiota. Entregou o jogo e não descobriu sequer um detalhe. Agora é que o Gouvêa não falava nada sobre o assunto mesmo. Isso se é que ele sabia alguma coisa e se é que havia alguma coisa pra saber.
V
Ao contrário do que imaginara, depois do baque inicial Renato sentiu-se aliviado pela conversa com o Gouvêa. Era sacanagem do Heitor e pronto, não pensaria mais naquilo. Saiu da gráfica e foi ver a Cida, certo de que ainda teriam muita coisa boa pela frente.
Tocou a campainha e o irmão da Cida atendeu, disse que a irmã havia saído, não sabia bem pra onde, talvez visitar alguma amiga. Renato agradeceu e voltou à casa. Beijou a avó e até cantou pra ela “Parti de minha rua num vôo até a lua no meu foguete particular...”. A avó sorriu e enxergou o Renato de 5 ou 6 anos atrás. O neto era um bom rapaz e isso a descansava.
A janta estava quente sobre a mesa. Carne desfiada com moranga e arroz (detestava comer feijão à noite), suco de uva e um pedaço de goiabada pra depois. Jantou e foi de novo procurar a Cida – ela morava perto e ele não era muito de telefonar. A mãe atendeu a porta e disse, com um sorriso, que a Cida não iria dormir ali hoje, tinha ido para a casa de uma tia. Já em casa, diante da televisão, Renato só pensava em como seria sua vida com ela. Com eles. Renato queria casar com a Cida e com a família dela.
Acordou com saudades e, como era sábado, pegou a bicicleta e foi dar bom dia pra Cida na casa da tia. Era longe, mas ele não ligava, sábados eram dias vivos, feitos pra gente não parar. 50 minutos depois estava tocando o interfone do predinho. A tia atendeu com voz de sono, ele perguntou pela Cida e ouviu que ela não dormira ali. Confundira as tias? Tinha certeza de que a futura sogra havia dito Tia Márcia.
Não se enganava, pelo contrário, se esclarecia. Voltou para a casa da Cida, sentou-se à porta e esperou. Cida desceu do ônibus e empalideceu ao vê-lo ali, simplesmente parado. Renato mal se levantou e ela baixou os olhos. Começou a chorar e balbuciava um pedido de desculpas confuso, sem certeza nas palavras.
Renato deu um abraço longo nela, esperou que se acalmasse. Não sentia raiva, estava apenas vazio, estranhamente calmo. Não perguntou com quem, não questionou há quanto tempo, apenas abraçou a Cida e deixou esvair-se ali o seu resto de querê-la bem. Beijou sua testa e saiu.
Caminhou para casa e sabia que a partir daquele momento estava só, limpo, sem família de novo. Só a avó a esperá-lo. E estava tudo bem. Sábados são dias vivos mesmo que a gente morra um pouco.
VI
Eram 11 da manhã quando Renato acordou sobressaltado, o sol a castigar-lhe os olhos, a baba seca no canto da boca. Não ouvira a avó cantando. Escovou os dentes e saiu à sala já imaginando que a mesa não estava posta. Foi à casa da vizinha e pediu que ela entrasse e visse se havia alguém no quarto da avó.
Queria lembrar dela apenas cantando, sem ver o rosto sem vida. Não ouviu os soluços da vizinha, não viu as outras pessoas que entravam na casa, sentou-se na cozinha, à beira do fogão e cantarolou baixinho, só para a avó ouvir: “Agora sou patente de um mundo diferente e tenho coisas pra contar...”.
Na segunda não foi trabalhar. Separou as roupas, os objetos, encheu uma caixa de sapatos com o que trazia o sorriso de pensar na avó e doou o resto. A casa estava vazia. A semana começava junto com a vida de Renato. “Seu” Gouvêa falou que ele só precisaria trabalhar na quarta, mas não tinha muito o que fazer, esquecera-se de como passar o tempo sem a Cida, a avó e o trabalho. Entrou a tarde tomando uma cerveja no Bar do Neco, anestesiando-se sozinho.
VII
Segundas-feiras são irreais, difusas, enganadoras. Renato estava embriagado e via a cidade passar na avenida logo à frente, sem entender muito do que era viver. Perdia-se em fragmentos de pensamentos enquanto pedia mais uma e se deixava ficar por ali.
Saiu do bar e já anoitecia. Seguiu até a esquina de baixo e, pela primeira vez, dobrou à direita. As mulheres que se exibiam na rua pareciam gigantescas, com pernas, seios e nádegas que ele não sabia serem assim. O primeiro rosto que reparou foi de uma mulher um pouco mais velha, talvez 40, talvez um pouco menos.
Sem falar nada ela o pegou pelo braço e entraram em uma casa. O corredor escuro, a porta que rangia ao abrir, o lençol com estampa de flores bastante puído, os travesseiros quase uma lâmina. O quarto cheirava a suor.
Era um expectador daquele trabalho meticuloso da profissional. As expressões premeditadas, o toque preciso, o mover coreografado. Quando ela terminou a função, alcançando o resultado para o qual foi paga, puxou a cabeça de Renato para o seu colo e perguntou suave “você gostou, neném?”. Foi a primeira vez nos últimos dias que Renato sentiu-se bem.
O nome dela era Núbia. Renato passou a se encontrar com ela pelo menos duas vezes por semana, conforme lhe permitia o ordenado. O sexo não era incentivo para o encontro, mas sim a paz que seguia. Era como se a conhecesse desde muito antes, em algum lugar tranqüilo.
Na gráfica o deixaram mais quieto depois da morte da avó. O Heitor já não puxava conversa, o trabalho rendia mais. Nos dias que saía para ver Núbia ficava um pouco depois do horário, penteava-se, lavava-se demorado, enamorava-se. Ela também tirava um momento do seu ofício e limpava o excesso de maquiagem, trocava o perfume, asseava-se para ele.
A vida se reencaixava e domingos voltavam a ser dias leves e lúcidos como devem mesmo ser.
VIII
A chamada do Gouvêa veio de surpresa. Renato foi sem medo, sem precauções, mas sem saber o que esperar. Gouvêa parecia mais sério.
“Fecha a porta, Renato, senta aí. Andei pensando muito em você, rapaz, aquele dia que você veio aqui perguntar de sua mãe.”
A cabeça de Renato no sorriso da Núbia.
“Olha, o que eu vou te dizer é foda, mas eu acho que vai ser melhor assim. Fiquei sabendo que o Heitor andou te falando umas coisas.”
A cabeça de Renato no colo quente da Núbia.
“Seu pai largou sua mãe, Renato, porque ela era prostituta aqui na cidade.”
A cabeça de Renato na voz suave da Núbia.
“Ela fazia escondido. Seu pai só descobriu quando ela parou de trabalhar porque estava grávida e o cafetão foi na sua casa tomar satisfações.”
A cabeça de Renato nas mãos longas da Núbia.
“Ele cuidou dela até você nascer e depois colocou na rua. Te criou sozinho com sua avó."
A cabeça de Renato no vestido novo que comprou para a Núbia.
“Não sei por onde ela andou, mas agora ela tá trabalhando aqui de novo. Sei lá, achei que você quisesse saber."
A cabeça de Renato no cheiro dos braços da Núbia.
Agradeceu e saiu. Trabalhou normalmente o resto do dia. Aprontou-se e foi vê-la. Vestido novo, batom rosa, cabelo penteado.
“Vem morar comigo, Núbia? Só nós dois lá em casa.”
“Vou sim, neném, largo isso aqui e vou. Faz tempo... essa vida me deu muito, neném, mas me tirou muito também.”
“Então pega sua coisas, vai.”
Núbia voltou vinte minutos depois com a mala simples, rota, deixara muito pra trás, no quarto, o que não cabia dentro dela. Chegaram na casa e amaram-se. Ele deitado no colo dela, o eterno do após.
“Meu nome de verdade não é Núbia, neném. Você zanga comigo?”
“É Núbia pra mim. Precisa contar mais nada, não. Me esquenta e me faz um cafuné, mãezinha.”
Terças-feiras são dias só de não saber. De seguir e ir.
Direto na têmpora: Collect Call - Metric
12 comentários:
Muito bom reler isto, Redatozim.
Onde eu li pela primeira vez, foi no Incultos?
Na verdade eu mandei pra você por email já faz um tempão, Gasta. Ele é meio inédito.
Ah, bom, então foi isso. Eu não tava mesmo me lembrando visualmente dele no formato do Incultos.
Muito legal, cara. Eu não lembrava do final, então a sensação que eu tive ao reler foi a mesma.
O conteúdo é ótimo, sem dúvida, mas a forma, na minha opinião, se destaca. Acho uma das suas melhores obras.
Fico feliz em ler isto, Gasta. Valeu mesmo.
Meu caro amigo, você tem que publicar esses contos!!!
Não é porfalta de querença, viu, cejunior.
Maurilo, adorei o conto. Muito mesmo! Estava indo para casa e resolvi passar no blog. O texto me pegou pelo pé e não consegui parar.
Tá na hora de pensar em publicar o Incultos 2...
Beijos procê!
Dea
Eu penso, Dea, eu só não tenho é jeito de publicar mesmo. Enquanto isso não rola, vou postando por aqui. Beijão e obrigado.
Está aí uma excelente sugestão do anônimo: PUBLICAR O INCULTOS 2
Acho que você tem que publicar esses contos maravilhosos
Quem sabe a Magnesita não patrocina, ndms? ;)
Bacanas os contos, Maurilo. Ou seriam crônicas? E eu adoro as sextas-feiras e não as quintas e detesto as terças. Bom findi! :)
Putz, Sakana-san, nunca sei se contos ou crônicas. Melhor chamar de textos.
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