Depois de escapar de uma nuvem escura, de um prédio cabreiro, de uma cortina sisuda, o raiozinho de sol se deita inocente sobre algum canto do chão.
Enxerido, revela a poeira que pairava insuspeita pelo ar da sala. Desnuda partículas, exibe no susto um ar que é visível, rouba um pouco de inocência e deixa lá seu tantinho de poesia.
Primeiro é o gato que busca o raio, a preguiça em pessoa, ou melhor eu diria, a preguiça em gatice. Se estica invertebrado, se espalha alongado e é um novo bichano, comprido e leve, de outra certa infantil substância.
Para o gato, raiozinho de sol é novelo, é prato de leite, é carne fresquinha, é caçar passarinho, tudo isso num suave jato de luz.
Mas chega o menino e se encosta no gato, felino mimado que não sabe dividir. E em pouco, são só menino e raio sol, dois, mas quase um.
É um entregar de tão doce abandono, de um quentume tão morno, que o corpo se perde em um sono micromoleculocelular e se deixa assim, um mantra, um sossego, uma paz que não há quem medite tão pura.
Um encontro de tempo desmedido, com regras das mais descabidas que fazem de um minuto uma tarde, que fazem de uma soneca uma vida.
Um menino e um raio de sol, pronto. Me basta, me supre, me completa mil cenas, me recheia mil sonhos, me inventa mil textos. Mas então, como toda e qualquer tragédia, a nuvem escura se move um milímetro, o prédio cabreiro se agiganta impassível, a cortina sisuda retoma seu posto.
Em um cruel passe de mágica, da luz fez-se o vago e já não resta da fresta o jorro iluminado. Sumiu-se a poeira que antes bailava, notícias do gato já não se tem, perdeu-se o menino em outra brincadeira.
No pedaço de chão, impressa em carpete, restou a invisível sensação de memória, um talvez de infância, um fiapo de instante. Uma ausente presença que aquece e conforta e promete outras tardes para quem não amanheceu ainda.
Direto na têmpora: Pour que l'amour me quitte - Camille
2 comentários:
MA-RA-VI-LHO-SO!!!!
Obrigado, Fê.
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