quinta-feira, setembro 09, 2010

Traição

Segue aí um continho que saiu no meu falecido livro Incultos. Aliás, os três primeiros leitores de BH que comentarem esse post vão levar as últimas unidades do Incultos de presente.

Ah, antes que eu me esqueça, o título do texto é "Confiança".


Por pior que esteja o mundo, o homem ainda confia no homem de uma maneira incrivelmente cega. Se não fosse assim, de que outra forma alguém acreditaria que ao entrar naquele salão de barbeiro a pessoa segurando a navalha não o deceparia instantaneamente? Sobre o avião, então, uma aeronave comandada e vistoriada por completos desconhecidos, melhor nem falar.

É o mesmo tipo de confiança que o Seu Argemiro depositava em sua esposa. Cego desde pequeno, virava-se muito bem até que conheceu Dona Clóris. Em seus 35 anos de casados, Dona Clóris cuidou do Seu Argemiro como quem trata de um bebê: fazia sua comida (inclusive o lanche para o trabalho), escolhia suas roupas, barbeava, lia, escolhia as músicas para ouvir antes de dormir, enfim, vivia generosamente as duas vidas do casal, tudo suprindo e nada pedindo a não ser dependência absoluta.

Depois da aposentadoria, Seu Argemiro enfurnou-se cada vez mais na malha de cuidados que havia em casa. Tornou-se quase um móvel velho que precisa ser limpado diariamente, mas para quem ninguém olha duas vezes. A única exceção era o passeio matinal que fazia sozinho pelas ruas ainda tranquilas do Calafate e que preocupava secretamente Dona Clóris.

Em uma das muitas manhãs incrivelmente iguais que viveu, Seu Argemiro acordou sozinho, sem ser chamado pela esposa. Esperou a convocação para o banho, a muda de roupa para o dia, o café da manhã. Seguiu esperando o passeio, o almoço, a saída da empregada, a leitura do livro interrompida na noite anterior, o programa de rádio, o banho antes de dormir, o pijama, a janta.

Seu Argemiro se paralisou na espera. Havia atrofiado sua vontade nas mais de três décadas em que tornara-se fardo ao invés de gente. O medo lhe travara as pernas e não havia caminho já trilhado em sua escuridão. Imaginava apenas os motivos da demora sem pronunciar um som: a morte da esposa, a perda de um familiar, um assalto, um gigantesco engarrafamento, um evento imperdível.

Chegou a cogitar que a morte fosse assim, incrivelmente parecida com a vida, apenas um canto escuro para deixar-se imóvel e esperar algo que nunca vem. Entendeu-se então morto, e compreendeu a fome, as fezes e a urina quente que lheescorria pelas pernas como provações de quem aguarda no limbo até seguir seu caminho para o céu ou o inferno.

Na madrugada anterior, algumas horas antes do despertar solitário de Seu Argemiro, Dona Clóris olhou pela última vez a camisa manchada de batom que havia encontrado escondida na gaveta do marido.

Por vezes havia desconfiado dos passeios matutinos eventualmente longos e agora sentia entre os dedos a prova da ingratidão e do desprezo. Sem fazer cena demitiu a empregada e deixou casa com serenidade, sem nada mudar. Começaria vida nova longe dali, esqueceria os anos dedicados a Argemiro e seria com se nunca houvesse existido aquela traição.

O enterro de Seu Argemiro, alguns dias depois, foi simples. Dona Clóris não compareceu e poucos foram avisados. No enterro, a empregada se lamentava pela morte daquele ser tão pacífico. Sentia-se responsável por ter aceitado a demissão sumária, por não ter percebido alguma coisa, por não ter voltado à casa.

Culpava-se ainda mais pela omissão no trabalho. "Duas noites antes de eu ser demitida, peguei uma camisa do Seu Argemiro e emprestei pro Tonho sair comigo. Ficou suja de batom e eu escondi na gaveta bem lá no fundo pra Dona Clóris não ver. Nem deu tempo de lavar... tadinho do Seu Argemiro."





Direto na têmpora: Mango tree - Angus & Julia Stone

29 comentários:

Camila Florêncio disse...

\0/

redatozim disse...

Levou o primeiro Incultos, Camila. Gostou do texto?

Gabi Alvarenga disse...

Ainda não terminei de ler! Mas quero a promoção!

redatozim disse...

Gabi Alvarenga levou o segundo.

Lucas Fernandes Araújo disse...

Quero um tb!! :)

Gabi Alvarenga disse...

Terminei de ler.
To chocada!
Tadinho do Sr. Argemiro...

redatozim disse...

E o Lucas Fernandes levou o terceiro. Fechou a promoção, mas o texto continua lá.

Adamo Alighier disse...

Estava dando pau na hora de comentar. Perdi o livro? :/
Mas tudo bem, conto bacana!

redatozim disse...

Mas você gostou, Gabi? Tomara que sim.

Humberto Cardoso Filho (@humb_cf) disse...

Supremo!

O texto retrata maravilhosamente a confiança, nos seus dois lados.
Bom pra nos fazer lembrar que tudo tem pontos de vista variáveis e mutáveis, e que cabe a cada um tomar o lado que preferir baseado nas informações que tem.

Não pode mandar o livro pra Blumenau? Eu pago o Sedex XD hahaha

Parabéns!

redatozim disse...

Infelizmente não rolou, Adamo. Mas que bom que gostou do texto.

Camila Florêncio disse...

Cotidiano e próximo, como um bom conto sempre é!
Adorei...

Rute Faria disse...

Eu ganhei? rs To sempre aqui, eu mereço... vai! tb tô lendo..

redatozim disse...

Pô, Humberto, eram os três últimos mesmo, mas levo um dos meus infantis pra você quando eu for. Valeu o elogio.

redatozim disse...

Ganhadores, como fazemos pra entregar os livros? Fico feliz que você tenha gostado, Camila.

redatozim disse...

Poxa, Rute, desculpe,mas é que não tem mais mesmo. Eram os 3 últimos. :(

Anônimo disse...

Agenor? Nao era Argermiro?

redatozim disse...

Corrigido, Anônimo. Valeu o toque.

Lucas Fernandes Araújo disse...

Massa o conto! Certamente eu e minha esposa vamos curtir o livro. Bom, fala ai o jeito mais facil pra vc q eu vou buscar.

redatozim disse...

Tá aqui na agência, Afonso Pena perto da Getúlio Vargas. Vc tá trampando onde?

Camila Florêncio disse...

A Rute busca pra mim, lê e depois me entrega!
\0/

hahahaha

redatozim disse...

Opa, aí é com vocês. Tem o endereço daqui?

Lucas Fernandes Araújo disse...

A agencia aqui fica na senhora do carmo perto da macal - sion. Posso passar ai na TOM, na hora do almoço amanhã?

redatozim disse...

Eu não vou estar aqui, mas deixo pra você no terceiro andar, Lucas.

Lucas Fernandes Araújo disse...

Ok Maurilo, Valeu!!!
Amanhã por volta das 13:00hs

Unknown disse...

Adoro este texto! se eu não tivesse meu livrinho ficaria triste...Mas eu tenho e e leio sempre!

redatozim disse...

Viu como é bom ser leitora antiga, micho? ;)

Lucas Fernandes Araújo disse...

Incultos em mãos.
E o Viana diz: "Amiginho é a..." rsrs

Legal demais.

Obrigado
Lucas Araújo

redatozim disse...

Valeu, Lucas. Bom proveito.